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Manifesto pelo prazer de indefinir a vida

Por Olga de Mello

Com uma narrativa que desafia o parâmetros de tempo, gênero e identidade, “Criogenia de D. – ou manifesto pelos prazeres perdidos” permite tantas interpretações que o niteroiense Leonardo Valente, prefere manter-se distante de qualquer rotulação para seu livro. Embora não se reconheça como protagonista em seu quinto romance, ele mesmo admite que está distante de uma só classificação, transitando por diversas fronteiras da existência. Há mais de dez anos, ele se desdobrou em múltiplas atividades como escritor, jornalista, cientista político e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2017, o romance “A Procissão”, ainda inédito, lhe deu o Prêmio José de Alencar da União Brasileira de Escritores. Naquele ano, “Criogenia de D.” começou a ser gerado, tendo passado pelo formato de conto até ganhar sua forma final em dezembro de 2020. Ao Correio da Manhã, o autor fala sobre este livro que “não se preocupa em facilitar as coisas para quem lê” e o inquietante panorama da criação cultura no Brasil.

Como foi a gênese da “Criogenia de D”?

LEONARDO VALENTE - Começou a ser escrito em 2017, durante uma noite de insônia. As primeiras linhas surgiram às três da manhã, ainda sem muita pretensão, só queria experimentar novas formas de narrativas, testar limites. Em 2018, resolvi formatar o que já tinha escrito para um conto, que ganhou o nome de “Criogenia do Inconsciente”, e foi publicado em duas revistas literárias. Em 2019, esse conto foi publicado na primeira versão em livro (revista impressa) da “Gueto”, pela editora Patuá. Em 2020, com o início da pandemia, decidi que o conto viraria romance. O ponto final aconteceu enquanto tive covid, em dezembro. Pensei: agora que a vida me mostrou que eu posso não estar mais aqui a qualquer momento, vou planejar minuciosamente essa publicação.

Como definir “Criogenia”? Romance, novela, testemunho de uma época? É importante haver uma definição?

Estruturalmente, é um romance que flerta com o texto teatral, com o monólogo. Isso porque a narrativa em primeira pessoa, muito introspectiva, em vários momentos me remete ao teatro. Mas não é um texto teatral em essência, é um romance, com todos os hibridismos que o integram, com todas as amarras rompidas na estrutura narrativa. Sempre escrevi na fronteira entre gêneros narrativos, talvez porque já tenha trabalho com vários por muitos anos, a escrita jornalista, a acadêmica e a literária. Na verdade, não apenas na literatura eu transito por fronteiras, mas na vida como um todo, isso vale para aspectos sociais, afetivos, profissionais. Nunca pertenci a um grupo, mas sempre consegui transitar entre muitos. Isso me conferiu uma certa solidão, é verdade, uma sensação de não pertencimento, mas ao mesmo tempo me deu condições de, ao não conseguir ser um, ser um pedaço de muitos. Eu sou uma colcha de fuxico.

Uma questão que intriga o leitor é a ausência de definição de gênero do protagonista. Por que essa escolha?

Somos condicionados a classificar e enquadrar tudo e todos, e nossa primeira referência para isso, que é uma construção social, é o gênero. Primeiro, definimos: é homem, é mulher, é homem trans, é mulher trans, é não-binário ou não-binária. Precisamos disso para seguirmos no juízo de valor, na avaliação do comportamento e de tudo mais. Não fornecer essa informação é tirar o outro da zona de conforto e ao mesmo tempo alertar para o fato de que há impressões de vida, há sentimentos, há questões que são humanas, de todos nós de forma indistinta, e que assim devem ser vistas, sem outros filtros. Este é um livro que não se preocupa em facilitar as coisas para quem lê.

Tanta indefinição tem um sentido? Qual?

Quando falamos de vida, só consigo ver definição na morte. Todo o resto é uma enorme incerteza, não há nada definido nem definitivo. E se a proposta de D. era se expor em vida, a definição é que me parece sem sentido. D. não fornece informações suficientes para receber classificação em faixas etárias ou em grupos sociais e econômicos. Tem medo de panela de pressão, mas revela bom conhecimento de cozinha, inclusive de seus truques. Aliás, mestres de cozinha não podem ter medo de panela de pressão? O fato de cuidar, de servir e de acolher remete ao gênero feminino, mas por puro condicionamento de todos nós, assim como o fato de dar-se ao sexo impessoal em inúmeras passagens remete ao gênero masculino, pelos mesmos motivos. Uma pessoa de classe econômica mais baixa não pode conhecer o que se convencionou chamar de boa cozinha? Não pode querer ter uma empregada? Não pode conhecer teóricos e ter uma capacidade reflexiva mais densa porque teve boa educação e formação? Quando omitimos o gênero e outras informações básicas, o outro tem o ímpeto de classificar por si mesmo, precisamos classificar tudo, precisamos situar as pessoas em nossas pré-formatações. D. vai ser o que o leitor classificar, vai ser muita coisa, portanto.

Você pensou na narrativa para ser lida pela ordem ou que o leitor se sentiria livre para uma leitura não linear?

D. diz em um momento que não está em uma reta, mas em um circuito oval, em uma espiral, que a leitura de si exigiria lentes não convencionais. A não linearidade, em um primeiro momento, não foi consciente de minha parte, mas dei-me conta dela antes do ponto final. Essa é uma das leituras possíveis.

D. se reconhece em Anna Karenina e Emma Bovary, personagens que morrem em nome das desilusões amorosas e da falta de aceitação social?

Anna, a personagem real que deu origem ao livro de Tolstói, jogou-se na frente de um trem para que sua morte, além de resolver o fim de sua não aceitação pela sociedade de seu tempo, gerasse remorso em Bibikov, seu amante, uma vingança com o custo da vida. Ao reproduzir essa história em um clássico da literatura universal, Tolstói, seu ex-vizinho, eternizou aquela vingança. D. considerou que morrer na ficção após tornar-se apenas o que escreveu seria, em certa medida, uma forma de vingança eterna, criogenizada, contra seus ex-maridos. Mas o trem não a matou uma vez, a dilacerava todos os dias, se vida nos dá uma morte física, a ficção nos permite morrer com mais frequência. Karenina e Bovary converteram-se em apropriações e deturpações farsescas de D., que nunca teve a humildade como uma de suas características.

Quais autores indicaria hoje a um brasileiro, que sofre da fama de não ser um povo leitor?

Como leitor, sou uma quimera formada por Saramago, por Clarice e por Hilda Hilst e que está fascinado pela literatura brasileira contemporânea. Estamos produzindo obras maravilhosas, talvez este seja o momento mais rico de nossa literatura, e acho uma pena que isso só venha a ser valorizado no futuro. Leiam Clarice, leiam Saramago, Guimarães Rosa, mas conheçam também Milton Hatoum, Maria Valéria Rezende, Victor Heringer e tantos outros. Informem-se, de forma especial, sobre o que está sendo publicado em médias e pequenas editoras. Delas, está vindo uma revolução.

D. fala de sua criação – tem alguma relação com a vida do autor? D. foi inspirado em alguém?

D. tem muito de mim, mas não sou eu. Não é um livro de autoficção, tem muito de muita gente. Acho que D. é um pouquinho de praticamente todo mundo que conheço com um pouco mais de intimidade.

A taxação de 12% em cima dos livros vai afetar o mercado e os leitores?

Sobre a taxação, a meu ver nenhuma surpresa vinda de um governo que declaradamente deseja destruir toda a produção cultural relevante no Brasil. O atual governo é uma eterna Noite dos Cristais para a cultura. Conto nos dedos de uma mão as editoras que fazem parte do que se chama grande circuito dentro de um país continental de 200 milhões de habitantes. Nossa literatura teria morrido se só dependesse delas, e isso não é uma crítica a elas, muitas fazem ótimo trabalho, é um panorama estrutural de um país que atrofia. Uma profusão de editoras pequenas e médias reaviva antigos talentos e lançando muitos outros. Apesar de tudo de ruim que nos cerca, há no Brasil hoje uma literatura muito viva, dinâmica e de qualidade. É, paradoxalmente um grande momento da literatura brasileira que, tenho certeza, será muito estudado por futuras gerações.

 

Um intrigante exercício literário

Existe gênero no fundo da alma de cada personagem? Definir alguém por gênero induz a percepção dos sentimentos experimentados pelo outro? “Criogenia de D. – ou manifesto pelos prazeres perdidos” (Mondrongo, R$ 45), de Leonardo Valente, não apresenta questionamentos ao leitor, que sente a urgência de uma reflexão própria a cada desabafo de D., que tem em Anna Karenina, de Tolstoi, e em Madame Bovary, de Flaubert, referências múltiplas na vivência, na ficção e nas paixões.

Desvendar o gênero de D., um ser angustiado, exuberante e em perpétua análise de sua inquietude, não importa dentro dessa narrativa fragmentada, ora poética em prosa, ora prosa em poesia. O cuidado em iniciar cada trecho ou frase com letras minúsculas cria um suspense visual: D. faz o inventário de sua trajetória, recorda a rotina do morador da metrópole, que precisa ir à academia de ginástica antes de se dirigir ao local do trabalho, num tempo pré-pandemia de covid.

A forma é rompida não apenas como enredo, mas na construção do personagem de classe média urbana contemporânea, intelectual que exerce a crítica da gourmetização dos costumes, comentando, ácido, que azeite na água para cozinhar espaguete “é pós-verdade de quem acha que entende de cozinha”. Representante da geração que teve empregada na “casa dos pais” para todo o serviço doméstico, D. revela sua origem “protegida” ao comentar a primeira experiência de cozinhar feijão: “tinha medo da panela de pressão. pânico, na verdade. considero o ato de cozinhar feijão o gesto final no processo de independência pessoal (…) durante toda a vida, só comi feijão cozido por outros”.

Apesar do prazer em cozinhar, a obrigação de preparar alimentos diariamente é tediosa. Enquanto descreve a mistura de temperos requintados e o congelamento de refeições, D. mescla o desejo de manter a casa acolhedora e arrumada e o desprezo por tal tarefa, que almeja destinar a alguém contratado. O medo da solidão, acredita, “pode ser resolvido” com um ambiente impecavelmente limpo e organizado: “talvez precise mais de uma empregada ou empregado do que de um marido. melhor ainda se a tal empregada ou empregado gostar de literatura e de boa gastronomia. uma vida confortável me dispensa do amor romântico”.

O conforto da classe social privilegiada, no entanto, não contribuiu para transformar em relações proveitosas os diversos ex-casamentos, que D. apresenta identificando-se tanto no feminino como no masculino sem temer confundir quem lê suas confidências: “sou portadora da síndrome da imunodeficiência afetiva, contraí de meu segundo marido. ele não tem a doença, mas tem o vírus, já eu sou mais fraco”. Se D. recusa definição em gênero, não esconde parafilias, descritas com realismo que encabulam o personagem, mas que podem expressar seu desânimo diante da resistência de uma sociedade patriarcal à qual precisa se submeter, sendo homem ou mulher.

A lembrança de servir aos maridos, do estado de anuência e submissão constantes justificariam o isolamento e o desejo de baixar a temperatura de uma vida de frequente dedicação ao outro. D. se transmuta a partir do desejo do outro, vítima do adestramento, desde a infância, a se deslocar sobre trilhos e a jamais sair de cima deles, por
determinação do pai.

Nesse exercício literário fascinante, o jornalista Leonardo Valente, professor universitário nascido em Niterói, aborda mais do que as oscilações de gênero ao trazer as dúvidas filosóficas de uma sociedade pautada pela desigualdade. criogenia de D. expõe uma faceta do brasileiro que nem percebe a riqueza a seu redor, retratando nossa época. (O. M.)

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