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Juiz do caso Kiss diz que buscou julgamento sereno e sem risco de anulação

Por: Fernanda Canofre

 O juiz Orlando Faccini Neto, que comandou o julgamento da tragédia da boate Kiss, diz concordar com o desfecho do Tribunal do Júri após dez dias de sessões e afirma que seu grande objetivo foi alcançar um resultado que "não contenha risco de anulação".

Para isso, diz ele, buscou "garantir que, diante de uma situação tão difícil, o julgamento se concretizasse em bases racionais, jurídicas, dentro de um cenário de serenidade, equilíbrio".

Ele procurou manter horários regulares para os jurados e atendeu a pedidos deles para ver uma partida de futebol ou ter acesso a um baralho. As broncas que distribuiu entre as partes, acusação e defesa, algumas virais na internet, foram para garantir a conclusão dos trabalhos, afirma.

Na última sexta (10), o juiz anunciou a condenação dos quatro réus acusados por homicídio e tentativa de homicídio por dolo eventual no incêndio que, quase nove anos atrás, deixou 242 mortos e mais de 600 feridos. As penas chegam a 22 anos de prisão.

A decisão partiu do corpo de sete jurados. O magistrado tinha três sentenças encaminhadas, baseadas nas teses apresentadas pelas partes: absolvição, desclassificação (retirando o dolo) ou condenação.

Professor na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), ele diz que não costuma falar de seus casos em sala de aula. Conversou com a reportagem nesta segunda-feira (13) sobre o júri que foi o maior do Judiciário gaúcho e que ele considera o mais difícil de sua experiência como juiz até aqui.
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Pergunta - Como o sr. está lidando com o pós-júri?
Orlando Faccini Neto - Tranquilo. No sábado (11), fiquei mais recatado, acompanhando a repercussão nas redes sociais e na imprensa. No domingo, eu estava mais recuperado e foi possível entender que o júri se concluiu, já olhando para a frente, encarando o futuro. A carga emocional de um caso como esse é imensa. Justamente em razão disso eu procurei trabalhar com toda tranquilidade, ouvir todos os pontos de vista, regular as manifestações, evitar em alguma medida que os jurados fossem colocados diante de situações muito pesadas, limitando a própria exibição das imagens.
A ideia foi garantir que, diante de uma situação tão difícil, o julgamento se concretizasse em bases racionais, jurídicas, dentro de um cenário de serenidade, equilíbrio, de amplitude de atuação para todas as partes.

O sr. citou alguns livros durante o júri. Como foi a sua preparação?
OFN - Eu procurei ler situações similares ou com alguma relação ao que ocorreu na boate Kiss e que tenham ocorrido em diversos lugares do mundo. Procurei verificar como os respectivos sistemas jurídicos deram tratamento a essas questões.

O sr. disse que foi seu júri mais difícil e que tinha receio de que não fosse concluído. Por quê?
OFN - Pela dimensão temporal, pela quantidade de pessoas a serem ouvidas, pelo desgaste dos jurados, pelo fato de estarmos em um período de pandemia, enfim, todas essas variáveis. Havia receio de que, começado o júri, algum percalço pudesse levar-nos a perder o trabalho realizado. O grande objetivo foi realizar um julgamento idôneo, hígido, que não contenha risco de anulação. O que me importa é ter concluído os trabalhos.

Em alguns dias, a transmissão do júri pelo YouTube tinha cerca de 20 mil pessoas acompanhando ao vivo. A repercussão interfere?
OFN - Não. Primeiro, porque os jurados não ficam sabendo disso. Segundo, porque nós nos concentramos no que se passa no ambiente interno. Agora, para a opinião pública, eu acredito que é muito importante, na medida em que as pessoas conhecem o sistema de julgamento, avaliam a conduta das partes, do próprio juiz.

Para o sr., o dolo, afirmado pelos jurados, está claro neste caso?
OFN - A plausibilidade do dolo eventual foi afirmada pelo juiz de Santa Maria, que pronunciou os réus. Isso foi confirmado por dois desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; um votou vencido, o que levou a uma nova apreciação ainda no TJ-RS, quando a votação ficou 4 a 4. Houve recurso para o STJ (Superior Tribunal de Justiça), em que cinco ministros afirmaram a plausibilidade do dolo eventual. Essa plausibilidade foi incrementada por um juízo de certeza dos jurados, que votaram pelo dolo eventual.
Eu estou de acordo com a decisão do júri e estaria de acordo fosse ela qual fosse. Eu sou um magistrado que acredita na instituição do júri. Acho que ele precisa de reformas simplificadoras, que o situem no século 21, mas, enquanto expressão de um sistema de Justiça democrático, acho que o júri acerta sempre.

O intuito de minimizar aspectos emocionais, com o desaforamento do processo de Santa Maria (RS), foi alcançado?
OFN - Foi alcançado, mas não tenho condições de avaliar se o julgamento em Santa Maria inviabilizaria ou não isso.

Como juiz do tribunal do júri, o sr. acha que o sistema judiciário brasileiro dá voz ou olha para as vítimas em geral?
OFN - O ponto de vista das vítimas ou dos familiares das vítimas é deixado muitas vezes em segundo plano. Há doutrina estrangeira que preconiza o inverso. Há países em que, após a condenação, existem audiências tendentes a escutarem-se vítimas e familiares acerca da pretensão de pena que possuem. Noutros casos, se traz a intensidade do sofrimento, a dor da perda, circunstâncias que são peculiares às pessoas lesadas, como relevantes para a dosimetria da pena.
É importante dizer que a perspectiva da vítima não é de ser tomada em conta para o juízo de condenação ou absolvição. Isso se faz a partir das provas do processo. Agora, quando há um desprezo completo à condição da vítima, o sistema penal passa a olhar simplesmente para aquele que infringiu a lei. É necessário que olhe também para aquele que, sem infringir a lei, teve sua condição de vida degradada ou piorada.
O processo penal e a sentença criminal precisam produzir algum apaziguamento no espírito daquele que foi violado por outrem. Eu percebi isso no caso: em alguma medida, as pessoas envolvidas com o episódio enunciaram que se sentiram respeitadas pelo sistema de Justiça. O que, em última análise, significa respeitadas pelo Estado.

O sr. pontuou algumas vezes sobre manifestações de condolências pelos réus. Isso pesou nas penas?
OFN - Para efeito da aplicação da pena teve uma relevância, digamos assim, marginal, porque eu não pretendi dar uma sentença que confrontasse os padrões da jurisprudência solidificada. As penas não foram elevadas em decorrência da ausência disso, mas, em alguns casos, não necessariamente nesse, se poderia trabalhar com a ideia de reduções de sanção quando os acusados demonstrassem que se importam com o grau de lesão causado nas vítimas.

Ao final do júri, o sr. foi abraçado por alguns pais que acompanharam os dez dias de julgamento.
OFN - Já me aconteceu noutros júris, porque eu sempre fui um juiz que recebeu partes, advogados, acusados, familiares de presos, de maneira absolutamente aberta. Já tive manifestações de agradecimento pelo trabalho realizado, não pelo resultado em si. Encarei ali como expressão de agradecimento pelo júri ter chegado ao fim, isso é importante, independente do resultado colhido.

Familiares disseram que esperam que a sentença sirva para evitar que algo assim aconteça com outros jovens. O sr. acredita que um julgamento como esse tem também esse papel?
OFN - Acredito que sim. Há sim um elemento de prevenção, no sentido de projeção para o futuro, derivado das sentenças criminais.

O sr. decretou a prisão dos quatro réus, mas em seguida veio uma liminar concedendo o habeas corpus. O que o sr. achou?
OFN - Acho a liminar explicável, do ponto de vista jurídico, porque há discussões acerca do tema. Porém devo dizer que cumpri estritamente o Código de Processo Penal. De outra parte, a Constituição diz que cabe habeas corpus quando o constrangimento a liberdade de locomoção é ilegal. Não se trata de um ponto de vista exclusivo do desembargador que deu a liminar. Muitas pessoas pensam como ele. Eu discordo, mas respeito e, como juiz subordinado à hierarquia do tribunal, cumpri a decisão sem nenhum constrangimento ou crítica.

Esse foi o maior júri do Judiciário gaúcho. Como o sr. o resume?
OFN - O mais importante é que tivemos um desfecho. Esse era o objetivo, começar a terminar o júri. O resultado, para mim, é o resultado correto, porque toda a decisão que o júri tomasse teria, em mim, um defensor. Acho que foi histórico pelo fato de que é um episódio muito marcante. Sei que houve júris mais longos [no Brasil], mas desconheço algum que tenha número tão expressivo de vítimas fatais e de tentativas. Isso me parece que é diferente de todos os júris que já tivemos no país.

O sr. é ativo nas redes sociais. Compartilha dicas de filmes, livros, vídeos de música. Seu número de seguidores aumentou consideravelmente nesses dias, passando de 40 mil. Como é para um juiz lidar com isso?
OFN - Tinha no máximo 3.000 [seguidores]. Certamente vou ter que refletir acerca do modo como me apresento nas redes. Elas eram muito mais restritas ao universo de pessoas que, de fato, eu conhecia. Às vezes, as pessoas veem a magistratura como algo muito distante, e eu senti uma aproximação, de certa maneira, como um representante do Poder Judiciário entre os mais de 18 mil juízes do país. Quando, de alguma maneira, a imagem do Judiciário é bem vista, enobrece a nossa função e fortalece a democracia. É importante que as pessoas acreditem que as instituições podem funcionar, isso é fundamental.
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RAIO-X
Orlando Faccini Neto, 45, formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, professor do mestrado do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), em Brasília, e professor de direito penal da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

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