Covardia com o amigo da madrugada

Por Affonso Nunes

Sem qualquer aviso prévio aos ouvintes, a direção da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) tirou do ar uma de suas maiores atrações: o veterano radialista Adelzon Alves, de 80 anos. Conhecido como “Amigo da Madrugada”, mesmo nome do programa que mantém desde 1966, inicialmente na Rádio Globo e desde 1990 na Rádio Nacional, sempre da meia-noite às quatro da manhã.

Adelzon fora aconselhado pela direção da EBC, que administra a Nacional, a reduzir a quantidade de sambistas que tinham acesso ao prédio da emissora durante a madrugada. Até o fechamento dssta edição, a direção da EBC não comentou a decisão.

Mesmo sem ter composto um único samba na vida, Adelzon pode ser considerado um gigante do gênero. Como jornalista, radialista e produtor musical ajudou a revelar gerações e gerações de talentosos artistas, sobretudo do samba.

Seu programa pioneiro iniciou um movimento de valorização do compositor do morro. Compositores como Cartola, Candeia, Nelson Cavaquinho, Zagaia, Silas de Oliveira e Dona Ivone Lara eram figuras frequentes no estúdio.

Com aguda sensibilidade para intuir sucessos certeiros no gosto popular, foi responsável pela divulgação de clássicos da música popular dos anos 70, como “Foi um rio que passou em minha vida”, de Paulinho da Viola, e “O pequeno burguês”, de Martinho da Vila. Os dois então jovens compositores foram aconselhados pelo radialista a trabalharem a divulgação das referidas faixas de seus discos lançados naquela ocasião.

Seu faro musical levou a tornar-se produtor musical da cantora Clara Nunes (1942-1983), sua grande paixão, que estava iniciando sua vitoriosa carreira. Outros sambistas alcançaram sucesso sendo produzidos por Adelzon, tais como João Nogueira, Roberto Ribeiro, Ivone Lara e Wilson Moreira. Também dirigiu o trio “Os Tincoans”, que gravou “Cantos Afros” autênticos, em iorubá arcaico.

Inúmeras histórias e causos rondam a vida do radialista. Uma que merece ser lembrada foi o conselho que deu a Abelardo Barbosa, o Chacrinha, quando este quis vetar em seu programa o lançamento da bela valsa “Das rosas”, de Dorival Caymmi.

– Chacrinha, daqui a algum tempo, essa música estará sendo interpretada pelos maiores cantores do mundo. Você vai ficar mal – advertiu Adelzon.

E o homem de rádio estava certo, pois a canção ganhou, pouco tempo depois, gravação de Sarah Vaughan, uma diva do jazz.

A demissão do radialista caiu como uma tempestade no meio musical, despertando críticas de inúmeros artistas à decisão da EBC. Uma manifestação em apoio a Adelzon, reunindo fãs e artistas, está marcada para esta segunda-feira (10), na frente do prédio da rádio.

- Estamos vivendo momentos autoritários. Perseguir um capitão da cultura popular como o Adelzon é típico desse fascismo cultural. Elas minam a educação, a cultura - acusa o sambista e produtor Didu Nogueira, sobrinho de João Nogueira.

Filho de Martinho da Vila, o sambista Tunico da Vila destacou o quanto Adelzon fez decolar não só a carreira de seu pai mas de todos os grandes sambistas daquela época, como Beth Carvalho, Alcione e tantos outros

- Espero é que esses tempos terminem logo. E que uma outra emissora o contrate logo, porque Adelzon é uma memória viva de nossa cultura popular.

Um dos maiores pesquisadores da MPB, Ricardo Cravo Albin, classificou a decisão da emissora como “punhalada”.

- Espero que essa notícia não se confirme. Adelzon mantém seu programa por 53 anos. Possui altíssima legitimidade com o samba, seus autores e seus bastidores. É dotado de historicidade no sentido de sua grande contribuição à Música Popular Brasileira. Portanto, jamais poderia sofrer essa punhalada. Esse ato de injustiça a um profissional com essa trajetória pode trazer consequências devastadores, pois o rádio é a vida dele - comenta Cravo Albin, que confirmou presença no ato em apoio ao radialista.

Apesar de suas raízes com o samba, Adelzon não é carioca. Nasceu em Cornélio Procópio (PR), onde, aos 19 anos, já trabalhava na local. Em 1962, mudou- -se para Curitiba, onde trabalharia nas rádios Guaicará e Cruzeiro do Sul. Em 1964, no Rio, tornou-se locutor na Rádio Globo.

No ano passado, por ocasião do aniversário de 80 anos, foi homenageado pelo Teatro Rival com um show que teve as presenças de Alcione, Neguinho da Beija-Flor e Rildo Hora, entre outros.