Os erros e acertos da ciência em 2020

 O ano de 2020 ficará marcado pelo coronavírus, que paralisou o mundo inteiro, infectou mais de 82 milhões de pessoas e causou a morte de ao menos 1,8 milhão.

Inúmeros médicos, epidemiologistas, imunologistas, virologistas, matemáticos, físicos, químicos, biólogos, microbiologistas e outras áreas da ciência, não apenas restritas aos campos da saúde e exatas, foram ouvidas neste ano.

Além da disseminação de termos e conceitos científicos, a ação conjunta de diversos pesquisadores em todo o mundo levou ao grande avanço da ciência do ano: as vacinas de RNA.

Embora fossem objeto de estudo há pelo menos três décadas, só neste ano, com investimento pesado e aceleração dos processos, e sem abrir mão dos protocolos de segurança, a pesquisa das chamadas vacinas de terceira geração, que usam DNA ou RNA em sua composição, apareceu.

Contudo, em meio a tantos acertos e avanços da ciência, vieram também alguns deslizes. Uma comunicação científica que zela pela transparência, especialmente em meio a uma pandemia, é essencial para não só alertar a população, mas também para tranquilizá-la. E, nisso, o Brasil falhou.

Junto ao problema da comunicação, o principal deslize científico foi o despreparo de parte da comunidade médica para lidar com relações de causalidade e não conseguir avaliar qualidade de evidências científicas, avalia a microbiologista.

Proliferaram artigos e pré-prints (artigo ainda sem revisão de pares) sobre tratamentos sem comprovação científica, como vitamina D, ozonioterapia e até enxaguante bucal, muitas vezes endossados por médicos.

A comunidade acadêmica percebeu isso, e o número de artigos de Covid-19 retratados, seja por fraude, erro metodológico, ou arrependimento dos autores, bateu recorde em 2020: 69, segundo o site Retractionwatch.com.

O número pode parecer baixo frente aos mais de 100 mil artigos publicados sobre o tema. Mas, em média, o número de artigos retratados por ano gira em torno de 4 a cada 10 mil, para todas as áreas da ciência.

Entre os artigos retratados, dois se destacaram: um estudo publicado na revista The Lancet, a mais prestigiosa da área médica, que apontava maior risco de morte associado à hidroxicloroquina em pacientes internados com Covid.

O estudo incluía dados de 96 mil pessoas, mas, quando os cientistas pediram os dados brutos, os autores negaram, alegando confidencialidade da empresa Surgisphere, que compilou os dados.

Diversos especialistas criticaram a falta de transparência e, após a publicação de uma "expression of concern" (expressão de preocupação"), a revista tirou o artigo do ar, justificando que não era possível fazer uma auditoria externa dos dados.

A mesma empresa, Surgisphere, esteva envolvida em outro artigo retratado na New England Journal of Medicine (NEJM), que avaliava a relação de eventos cardíacos de internados com Covid e medicamentos. A retratação também ocorreu por que auditoria independente não poderia ter acesso aos dados.

Embora o estudo da Lancet fosse o maior até então para avaliar os efeitos da hidroxicloroquina, diversos outros estudos publicados antes já apontaram que seus benefícios eram, em geral, falhos frente aos malefícios. Mesmo assim, a discussão sobre a droga não cessou.

Na mesma semana da retratação da Lancet, um outro artigo, publicado na NEJM, apontou que a hidroxicloroquina não tinha eficácia como profilaxia (prevenção da infecção) pós-exposição pelo Sars-CoV-2. Seu uso para redução de mortes ou de intubação também foi refutado um mês antes em estudo publicado na mesma NEJM.

Até mesmo a matemática não escapou do debate, e alguns papers e pré-prints foram publicados na tentativa de que a estatística extraída de revisões e meta-análises pudesse trazer novos argumentos à discussão. Não funcionou.

O acúmulo de estudos contraindicando a hidroxicloroquina era maior do que a fraca evidência a seu favor, e entidades médicas em todo o mundo, incluindo a SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), recomendaram abandonar o medicamento.

Apesar disso, no Brasil, o ministro da saúde Eduardo Pazuello, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e uma quantidade enormes de médicos continuaram defendendo o uso da droga.

É natural, frente a uma doença inédita, testar novos tratamentos, mas apenas com uma forte evidência favorável seu uso é recomendado. Outros fármacos também foram derrubados no meio do caminho, como o antiviral remdesivir, cujo uso foi contraindicado pela OMS pela qualidade fraca da evidência disponível, mesmo com a aprovação do FDA norte-americano.

As inofensivas máscaras também foram colocadas à prova de fogo. Um artigo publicado na revista Annals of Internal Medicine dizia que o uso de máscaras protetoras era ineficiente contra a transmissão do vírus e foi retirado do ar após uma enxurrada de críticas nas redes sociais. O conhecimento sobre o uso de máscaras e sua eficácia para proteção foi, enfim, comprovada em novembro, após publicação de um artigo na Lancet.

Por fim, a "framboesa do ano" da ciência pode ser dividida para dois artigos: um que associava as ondas 5G à entrada do vírus nas células da pele, publicado e logo em seguida retratado, e um capítulo de livro, publicado pela editora Elsevier, dizendo que o Sars-CoV-2 veio de "carona" à terra em um meteoro, uma ideia já divulgada pelo autor correspondente para outros vírus, inclusive o da Sars (de 2002) e largamente refutada pela comunidade científica. O capítulo de livro não foi retratado.

Por Folhapress