O centenário de Clarice

Por Luiz Antônio Mello

“Naquela terra eu literalmente nunca pisei, fui carregada no colo”, comentou Chaya Pinkhasovna Lispector, perpetuada como Clarice Lispector, sobre a cidade e o país onde nasceu: Chechelnyk, Ucrânia.

Nasceu em 10 de dezembro de 1920 e a sua família deixou a Ucrânia quando a escritora tinha dois anos. Uma rápida passagem por Maceió, depois Recife. Clarice tinha 14 anos quando chegou ao Rio de onde não mais saiu.

A editora Rocco está lançando as edições especiais do centenário da escritora, que já desaguam nas livrarias. A série começou com as publicações da década de 1940 “Perto do Coração Selvagem” (1943), “O Lustre” (1946) e “A cidade sitiada” (1949). 

Os livros ganharam um novo projeto gráfico assinado pelo consagrado Victor Burton e traz nas capas recortes de telas feitas por Clarice, que pintou 22 quadros ao longo de sua vida.

Na orelha dos títulos, o leitor encontrará a íntegra da tela retratada na capa, como a obra “Sem título”, que ilustra o seu romance de estreia “Perto do Coração Selvagem” e pertence ao acervo da escritora Nélida Piñon, e o quadro “Escuridão e Luz: centro da vida”, que aparece na reedição de “O Lustre”. Na contracapa, a foto de Clarice corresponderá à década em que cada livro foi publicado originalmente.

Além das novas capas, os livros ganham posfácios especiais escritos por grandes especialistas da literatura clariceana, como Nádia Battella Gotlib, Clarisse Fukelman, Benjamin Moser, Aparecida Maria Nunes, Ricardo Iannace, Marina Colasanti, Eucanaã Ferraz, Teresa Montero, Arnaldo Franco Junior e o próprio filho da autora, Paulo Gurgel Valente, sobre seu último livro, “A hora da estrela”.

O cineasta Luiz Fernando Carvalho, que está dirigindo uma nova adaptação da obra de Clarice (“A Paixão Segundo G.H.”), com estreia marcada para 2020, também assina um dos textos finais.

O editor Pedro Vasquez, da Rocco, explica que a opção pelo uso de posfácios em vez de apresentações ou textos introdutórios foi proposital com a preocupação de não dirigir ou tutelar a leitura, permitindo que o leitor aprecie o livro livremente: 

“Ao final do volume, a partir do texto dos especialistas, é possível contemplar a obra com outros olhos, sob um novo ponto de vista. O posfácio funciona, portanto, não como um guia de leitura e sim como um instrumento de expansão das possibilidades de interpretação, que, longe de direcionar ou restringir a interpretação do texto, multiplica as possibilidades de entendimento”. 

“Clarice tem uma popularidade cujo público não para de crescer, apesar dela ter falecido há quatro décadas. Sem dúvida ela está mais atual do que nunca, encontrando mais ressonância no coração dos leitores de hoje do que naqueles do seu tempo, quando a sociedade brasileira era bem mais acanhada do que a contemporânea”, conclui Vasquez. 

“Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora”, disse Clarice em uma entrevista a Júlio Lerner, da TV Cultura, em fevereiro de 1977. Ela pediu que que a entrevista só fosse divulgada após a sua morte, dez meses depois, em dezembro. 

Séria, de poucas palavras, franqueza cortante ela achava que “profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade. Tenho períodos de produzir intensamente e tenho períodos-hiatos em que a vida fica intolerável. 

Podem ser longos (esses hiatos) e eu vegeto nesse período ou então, para me salvar, me lanço logo noutra coisa, por exemplo, eu acabei uma novela, estou meio oca, então estou fazendo histórias para crianças.” 

O final da entrevista foi inusitado:

Na sua formação como escritora, quais aqueles autores que você sente que realmente lhe influenciaram, que marcaram? 

Clarice - Eu não sei realmente porque misturei tudo. Eu lia romance para mocinhas, livros cor-de-rosa, misturado com Dostoiévski. Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelos autores. Misturei tudo. Fui ler, aos treze anos, Hermann Hesse, [o romance] “O lobo da estepe”, e foi um choque. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora.

Ainda acontece de você produzir alguma coisa e rasgar? 

Clarice - Eu deixo de lado… Não, eu rasgo sim.

É produto de reflexão ou de uma emoção?

Clarice - Raiva, um pouco de raiva.

De quem?

Clarice - De mim mesma.

Por quê?

Clarice - Sei lá, estou meio cansada.

Do quê?

Clarice - De mim mesma.

Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?

Clarice - Bom, agora eu morri. Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.