Coluna Magnavita: Fux por Fux

 Em depoimento histórico na UERJ, faculdade na qual se formou em Direito, o ministro Luiz Fux fala na primeira pessoa sobre a sua trajetória, que agora o coloca no comando da Suprema Corte do Brasil

MINHA ORIGEM

"Meu nome completo é Luiz Fux. Nasci no dia 26 de abril de 1953, no Rio de Janeiro. Sou carioca da gema, como se dizia antigamente. Minha mãe é Lucy Fux. Meu pai chama-se Mendel Wolf Fux, imigrante romeno, brasileiro naturalizado. Meu pai é advogado. Ele era contador e, já depois da família crescida - eu tenho mais duas irmãs - resolveu fazer o curso de Direito, tendo o concluído com uma certa idade. Atua na área de contencioso Cível, normalmente em causas adstritas às justiças locais. Meu pai nunca advogou lá no Tribunal Superior.

A minha família é de exilados de guerra, da perseguição nazista. Tenho origem judaica. Meu avô e a minha avó se reencontraram no Brasil, após três anos separados. A minha avó conseguiu vir primeiro, exilada, depois é que veio o meu avô. Chegando aqui, meu avô exerceu uma função bastante humilde. Ele vendia roupas para pessoas de classe baixa, nas populações mais carentes.

Meus avós morreram com uns 92 anos. Eles foram muito gratos ao fato de terem sido bem acolhidos no Brasil. Tanto que o meu avô também assumiu uma entidade que era casa de acolhida de idosos, pessoas mais velhas desvalidas. Já minha avó era presidente de uma entidade que acolhia crianças abandonadas, o Lar das Crianças Israelitas.

Certa vez, um episódio bastante significativo ocorreu... Uma colega minha de sala do colégio, falou assim: “você sabe que nós somos parentes?”. Respondi que não sabia e ela continuou: “eu sou sua aparentada porque fui criada pela sua avó. Eu fui criada no Lar das Crianças”. Achei aquilo uma coisa lindíssima. Um momento espetacular de minha vida. Fiz uma grande amizade e a levei para rever minha avó. Ela já era mãe de família e tinha muita saudade de minha avó. Estes meus avós se chamavam Bertha Fux e Moisés Fux.

Por parte de mãe, talvez, se alguém acredita, vamos dizer assim, nessa absorção por osmose hereditária, o pai de minha mãe era um homem que exercia função de juiz arbitral na coletividade. Era um homem muito culto, dedicado às questões da justiça. Não tinha formação jurídica, mas era considerado justo. O nome dele era Luiz Luchnisky. Era um homem muito procurado, pela sua inteligência e sensibilidade. Intermediava vários conflitos entre pessoas influentes na sociedade. Era um homem do qual até hoje ouço falar muito bem. Não o conheci, mas deixou-me um nome magnífico, ligado à justiça, caridade e sensibilidade.

Os avós Bertha (de origem russa) e Moisés Fux (de origem Romena). Ela foi a responsável pelo Lar da Crianças Israelitas

 

MEUS ESTUDOS

Nós nascemos na comunidade judaica, ali no Andaraí, pertinho da UERJ. Eu tive uma infância com as limitações naturais de filhos de pessoas que não tinham uma colocação, digamos assim, expressiva na sociedade. Meu pai era técnico em contabilidade e lutava com muita dificuldade para manter os filhos. Minha mãe era do lar, como eram as mulheres de antigamente. A minha primeira grande chance foi quando eu passei para o Colégio Pedro II. Era um colégio público que tinha uma qualificação de ensino muito destacada. O Colégio Pedro II deu-me uma boa base para que eu pudesse, então, depois, fazer o vestibular para a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que sempre foi rigorosíssimo. Claro, hoje, o índice de demanda no vestibular da UERJ aumentou muito. Tanto mais que o Direito se transformou em carreira com muitas opções. A formação enciclopédica que o curso de Direito dá, permite ao alunado optar por várias profissões. Enfim, o conhecimento é multidisciplinar.

No Colégio Pedro II, nós tínhamos um diretor muito rígido, o professor Lacerda. Ele tinha uma característica que eu achava admirável: instigava no aluno o amor à bandeira, o amor ao Brasil. Os padrões morais e éticos eram muito exigentes. Ainda naquela fase inicial da adolescência, quando o jovem não tem muita noção dos critérios que deve seguir, nós não iniciávamos as aulas sem cantar o Hino Nacional. Havia ali uma catequese positiva no sentido de amor à coisa pública. Creio que aquilo ali acabou influindo nesse meu desejo de seguir a carreira pública.

No Pedro II fiz o ginásio e o clássico. O primário foi no Colégio Liessin. Era na Visconde de Ouro Preto. Eu tenho impressão que a formação escolar me conduziu para as Ciências Sociais. Talvez, aquelas matérias do Clássico acabaram gerando em mim um pendor por uma leitura mais compatível com a ciência jurídica. Por outro lado, e isso é inegável que acaba exercendo influência, comecei a trabalhar muito cedo, com 14 anos de idade. Eu era boy do escritório do meu pai. Acompanhei meu pai sair da atividade da contadoria para a advocacia. Ele me levava para frequentar o fórum desde 14 anos de idade. Eu admirava os juízes, eu assistia aos concursos. Todos os escreventes me conheciam. Ele me obrigava a ir de terno e gravata com 14 anos...

Fui admirando aquela liturgia, aquela solenidade que era característica do mundo jurídico. Meu pai sempre me deu uma noção muito exacerbada da ética. E, naquela oportunidade, o meio jurídico era um meio em que a moralidade, a ética, eram, pode-se dizer, os dois cânones maiores da profissão. Aquilo absolutamente me encantava.

Depois de uma certa idade minha mãe decidiu seguir a carreira médica. Tenho muita admiração pelos médicos. São muito serenos, homens que se dedicam à vida humana. Eu sou espiritualista. Dou mais valor a essas questões sensíveis do ser humano. Mesmo no exercício da minha profissão. O ser é mais importante que o ter. Sou mais um homem que vive os grandes problemas existenciais do ser humano. Gosto de pesquisar isso, de me dedicar a isso, gosto de ler sobre. Tenho verdadeira paixão pela leitura das vicissitudes da alma humana.

Dois fatores levaram a essa escolha. Primeiro porque a UERJ era universidade pública. Depois, a UERJ também era uma universidade, vamos dizer assim, de ponta. Tinha um grau de exigência muito bom. Era a melhor universidade do Brasil. Eu tenho certeza que a UERJ, na época em que eu fiz o vestibular, tinha um grau de excelência superior a várias universidades que, hoje, têm nível A. Naqueles tempos, para não cometer nenhuma injustiça, a única que se equiparava à UERJ era a USP.

Eu entrei em 72 e me formei em 76. Foi a formação do Pedro II, o Clássico do Pedro II, que me possibilitou entrar na UERJ. Não tenho dúvida.

Lembro do primeiro dia de aula. Eu iniciei o meu curso no Catete. Foi a primeira turma que se formou na UERJ do Maracanã. Eram turmas imensas, 150 alunos de manhã e 150 alunos à noite. Eu estudava à noite, porque trabalhava o dia inteiro. Era até o ‘Benjamin’, o mais novo do turno da noite. Só estudava à noite o pessoal mais velho, que tinha que trabalhar o dia inteiro. Não era comum um jovem estudar à noite. Eu tinha um bom desempenho e isso chamava muito a atenção.

Os meus amigos tinham 60 anos. Eu, com 23. Um ou outro era da minha geração. Nós tínhamos um grupinho pequeno. Sempre fui muito querido pelos amigos. Até hoje nós que nos formamos em 1976 e já temos 30 anos de formados, nos reunimos.

Conseguia trabalhar e estudar. O meu pai fazia questão que, no meio do trabalho, eu tirasse algumas horas para estudar. Ele, às vezes, me poupava de ter que fazer alguma coisa para eu poder estudar. Ao mesmo tempo, me impunha responsabilidades até bem além de minha idade, para que pudesse, desde cedo, adquirir maturidade suficiente, bem como ciência dos ônus sociais que um homem tem que assumir, em razão do seu trabalho, de sua vida pessoal.

Tinha “trote”, mas era um “trote” saudável. Por exemplo, o meu “trote” foi o seguinte: nós tivemos uma aula com um aluno que se fez passar por professor. Aí, todo mundo quieto, prestando atenção, ele falando um monte de besteira, ninguém entendendo nada. Até que chegou um momento, porque a turma era de pessoas mais velhas, que começaram a comentar: “Puxa, mas esse professor não está dizendo nada com nada. Acho que ele está achando graça da nossa cara porque não é possível que o que esteja dizendo tenha fundamento”. Até que, em um dado momento, se descortinou a brincadeira.

Mesmo grandes, as turmas eram muito unidas, em todos os sentidos. Nós participamos de blocos, blocos de rua mesmo. Uma vez nós fomos do Catete até o Bola Preta, todo mundo com gravata na cabeça.
Tínhamos um bloco da faculdade. Aquilo era saudável. Tínhamos até uma música própria. Havia uma cantoria que fazia chacota com o Sr. Magalhães, que era um secretário duríssimo. Dizia mais ou menos assim: “não há quem aguente nas noites e nas manhãs esse tal de Magalhães”. Por aí ia embora...

O chope era em um bar da esquina, que tinha um nome característico pelo fato de que, por ser muito estreito, nós ficávamos metade dentro do bar, metade fora. A gente chamava esse bar de “Meio Corpo Fora”... “vamos lá no Meio de Fora”, iam os professores também.

Os pais, Lucy com Mendel Fux

 

O INÍCIO

Sempre estagiei em órgãos públicos e graciosamente. Estagiei na Defensoria Pública e no Ministério Público.

No último ano de faculdade, mediante concurso público, exerci uma função remunerada e que foi meu primeiro passo profissional, na Shell do Brasil. A Shell era uma grande companhia, o concurso era muito difícil e só tinha duas vagas. Graças à minha formação da UERJ consegui lá ingressar.

Nós ainda vivíamos uma época de repressão bastante grande. Recordo-me que o professor Heleno Fragoso, quando dava aulas, iniciava dizendo o seguinte: “Boa noite, pessoal do DOPS. Boa noite, pessoal do SNI. Vocês estão trabalhando, mas eu também estou. Vamos começar a aula”. Então ele dava aquela noção de independência. Noção que acabou me contaminando, porque ali participávamos de debates políticos, tinha coragem suficiente, tinha problemas decorrentes. Lembro-me que quando o centro acadêmico da UERJ teve dificuldades em conseguir um telefone, por problemas políticos, intercedi e consegui o primeiro telefone do centro. O Centro Acadêmico estava aberto, mas com atuação bastante mitigada. Só voltou a ter uma atuação mais expressiva quando comecei a dar aula, já em 1977, 1978, foi quando o Centro começou a tomar corpo de novo.

Estudei para uma banca que era composta pelo Barbosa Moreira e pelo Chamoun. Então, queria saber qual era a linguagem deles, muito embora tivesse frequentado as aulas do professor Barbosa Moreira, que, aliás, fora meu patrono. Também trabalhei com o professor Barbosa Moreira na Procuradoria Geral do Estado, fui estagiário dele lá...

Nunca li um voto. Não leio os meus votos. Explico qual é a ideia que tenho do caso e, eventualmente, só para fechar o raciocínio, leio a síntese do voto. Essa metodologia de ficar lendo, ninguém presta atenção, ninguém aguenta. A pessoa gosta de saber porquê foi acolhida, porquê foi rejeitada, e da forma mais simples do mundo. Hoje há um movimento muito grande pela simplificação do Direito. O Direito é muito hermético. As pessoas não entendem. É a mesma coisa um médico, se começar a falar de doença com termos médicos, não se entende nada. O que se quer saber é o que se tem. Qual é o problema e qual a solução.

A BANDA

Tínhamos um conjunto musical, eu tocava guitarra. Tinha um colega meu que cantava, até hoje ele continua... O conjunto se chamava The Five Thunders, os Cinco Trovões. Mesmo como professor, continuei tocando minha guitarra nas festas dos alunos. E o José Márcio do Couto continuou a carreira dele. Quando fiz 40 anos de idade, consegui reunir todo mundo que tocava em nossa época. Fizemos um revival do conjunto e tocamos, cantamos, ensaiamos durante uma semana. Estava todo mundo em forma, deu tudo certo. Foi uma festa bonita em um lugar chamado Un, Deux, Trois, que tinha ali na Bartolomeu Mitre.

Dos 18 aos 19 ou 20 anos, cantava em uma boate chamada Don Quixote, que ficava na Bartolomeu Mitre. Na infância aprendi a tocar violão. Abandonei porque aquilo era muito maçante, era mais uma matéria. Comecei a tirar de ouvido. Já juiz, tinha lá na noite uma música... o pessoal me chamava para ir ao palco tocar... Eu ia. Toquei uma vez em um evento enorme quando estava começando a carreira da Daniela Mercury. Lá no Nordeste. Nunca tinha tocado em um lugar com tanta fumaça, super diferente... Tive que começar a podar um pouco isso porque a liturgia do cargo de magistrado exige um certo comedimento. Muito embora isso seja uma coisa popular.

Quando fui nomeado Ministro, alguns jornalistas, não sei movidos por qual sentimento, puseram que o ministro indicado era uma faixa preta de Jiu-Jitsu e tocador de guitarra. Como se isso fosse algum demérito.

A JUVENTUDE

Durante minha juventude, fiz esporte, fui realmente faixa preta de Jiu-Jitsu, conhecido aqui no Rio de Janeiro. Muito embora nunca tenha criado nenhuma confusão, como hoje se vê aí, infelizmente. Na minha época, os lutadores de Jiu-Jitsu, o professor faixa preta, davam o exemplo da retidão, de como devia ser um lutador. Esse foi o exemplo que tive com a família Gracie, com o meu professor, Oswaldo Alves, com Carlson Gracie, que Deus o tenha, morreu agora, tem uma semana que ele faleceu em Chicago. Na nossa geração de Jiu-Jitsu nunca ninguém criou problema nenhum.

O professor Celso Albuquerque de Mello não foi meu professor. Mas foi meu diretor na PUC. Fui professor da PUC também. Definia o professor Celso Mello como um homem de uma inteligência notável. Absolutamente despido de toda e qualquer liturgia e de vaidade. Era um homem simples, cultíssimo, queridíssimo pelos alunos, dedicado à atividade acadêmica, que era tudo o que gostava de fazer. Era admirado por todos. Sempre ouvi falar muito bem dele. No Mestrado, nós nos encontramos algumas vezes, em bancas examinadoras.

Minha formatura foi um grande festival, eram 300 formandos. Disputei arduamente e venci o concurso para orador de turma. Confesso sem qualquer pieguice, fui um estudante que lutei com bastante dificuldade. A UERJ era um padrão de referência. E, na época, infelizmente não existe mais, havia uma editora que dava um prêmio, que era o Prêmio Companhia Editora Forense. Formei a minha primeira biblioteca, porque ganhei o Prêmio por ter tirado em primeiro lugar durante os cinco anos de faculdade. Ganhei o que seria hoje R$3.000,00, aproximadamente, em livros. Era coisa demais. Hoje já é mais ou menos. Na minha turma não tinha essa questão de competitividade nociva. Foi uma turma que me apoiou muitíssimo. Eles tinham em mim, porque era um grande boa praça, o primeiro aluno da faculdade e o maior farrista, um amigo admirável.

O tom do discurso de formatura foi de gratidão, afetivo. Agradecia muitíssimo o que os professores tinham feito por nós, o que os colegas tinham feito para a nossa formação, falava um pouco da miséria do Brasil, a miséria da fome e a miséria intelectual, dizia das nossas perspectivas em vários campos, no campo da advocacia, do Ministério Público, da Magistratura ou do próprio Magistério, e terminava com uma lição de grande esperança. Tal como sou como pessoa. Sou uma pessoa que tem muita fé, muita esperança, sou muito perseverante, tenho nos meus ideais a minha grande bandeira. Cheguei muito cedo em tudo o que fiz porque nunca perguntei a ninguém qual era a minha hora. Eu sempre fiz a minha hora. Nunca admiti, dentro da minha independência pessoal, talvez por tudo o que eu tenha passado desde 14 anos, que ninguém me dissesse qual era a hora que eu tinha para dar início a minha vida profissional.

O ministro com a irmã Rosane, mais velha apenas 1 ano e quatro dias. Neste curto período que eles ficam com a mesma idade ele costuma chama-la de irmã gêmea

 

O MAGISTRADO

Primeiro procuro ver qual é a solução justa. E depois, procuro uma roupagem jurídica para essa solução. Não há mais possibilidade de ser operador de Direito aplicando a lei pura. Nós aprendemos assim por força de um engessamento levado pela política de repressão, e que hoje não existe mais. Então, hoje é muito importante que o professor se despoje desse ranço da ortodoxia do ensino, de que fica vinculado a só uma questão legalista. O Direito vive para o homem, e não o homem para o Direito. É preciso dar solução que seja humana. A justiça tem que ser caridosa e a caridade tem que ser justa. É preciso estar atento às aspirações do povo, porque, no meu modo de ver, assim como o Poder Executivo se exerce em nome do povo, para o povo; o Poder Legislativo se exerce em nome do povo, para o povo; o Poder Judiciário se exerce em nome do povo, para o povo. A justiça é uma função popular. Na faculdade deve-se partir desse ensino com a cabeça bem aberta para tudo isso. Porque aí se formam pessoas que farão as suas opções.

DEUS

Ninguém faz nada sem a mão de Deus. E nem acontece nada na vida que não seja desígnio de Deus. Quando você consegue alguma coisa, teve uma grande ajuda de Deus. Quando você não consegue é porque Deus achou que aquilo não era o melhor para você. E isso é uma forma de você se contentar, desde que você lute.

Eu diria aquilo que já coloquei em um livro: “a UERJ é uma das melhores partes de mim mesmo”. No curso da minha existência, é uma das melhores partes de mim mesmo. Tenho o meu lado humano, minha história, minha vida.

RIO DE JANEIRO

Todo mundo imagina que o Rio de Janeiro é bonito pelas suas praias, pelos lugares encantadores, pelo carnaval e futebol. Por um povo alegre. Mas, como eu e outros colegas dizemos nas palestras, e que logra obter grande acolhida dos auditórios, o Rio de Janeiro é maravilhoso, é lindo, mas entre uma caipirinha e outra, também se faz ciência.

Com a filha, a desembargadora Marianna, a esposa Eliane e o filho Rodrigo com sua esposa. No colo o primeiro neto