Coluna Magnavita: Os mortos não perdoam

Por Cláudio Magnavita*

O Correio da Manhã defendeu, em vários editoriais ao longo de 2020, que os crimes cometidos por servidores públicos e fornecedores, fraudando a compra de insumos e equipamentos para a pandemia, fossem considerados hediondos ou até crimes de guerra, única exceção da Constituição brasileira que permite a pena de morte.

O que estamos assistindo nesta virada de ano é à diluição, perante a opinião pública, da percepção da gravidade dos bárbaros crimes cometidos.

No Rio de Janeiro, o palco mais visível dessa absoluta falta de escrúpulos, alguns desses criminosos já estão em casa - ou nem sequer foram presos. A sensação de impunidade está virando uma silenciosa bruma que começa a tomar conta dos formadores de opinião.

Como admitir que o senhor Edmar Santos, um médico, que prestou o juramento de Hipócrates, que estudou medicina financiado pelo estado, militar da Polícia Militar e integrante confesso de uma quadrilha que abduziu toda a ética e moralidade do Palácio Guanabara, com um extravagante plano para construir oito bilionários hospitais de campanha, dos quais só um funcionou, esteja solto e vivendo um fim de ano festivo no conforto do lar?

E os milhares que foram enterrados em valas comuns, sem direito a velório, ou ainda aqueles que morreram sufocados esperando vagas de UTIs ou por respiradores comprados superfaturados e que nunca chegaram?

Esta quadrilha, parte dela filmada entrando várias vezes em um escritório da morte, no Centro do Rio, para definir como saquear a verba da saúde até o último centavo, está solta e esperando uma punição, que, pelos marcos legais pré-existentes, será branda apesar da gravidade das atrocidades cometidas.

Dois pastores da Assembleia de Deus, um deles réu confesso, ainda ostentam seus títulos. Que instituição religiosa é esta que mantém em seus quadros esses mercadores da morte?

Um deles faz um doido teatro de piedade, mas esteve à frente de negociatas deletadas próprio sócio, que simplesmente sumiu e não é localizado pela justiça para depor no Tribunal Misto do Impeachment.

Agora surge o personagem principal desta engenharia assassina, um governador de estado, eleito por obra do acaso e não pelas mãos de Deus, que continua tendo 60% da sua renda familiar paga pelo partido do pastor patrão, posando de ente religioso e de servo fiel da Bíblia!

O Iabas, o fraudulento instituto rechaçado pela área técnica da saúde estadual e defenestrado do Rio após levar a Prefeitura a colapso, foi contratado pelo governo deste neo-servo de Deus. Se a Globo e a CNN vasculharem os seus arquivos encontrarão entrevistas nas quais ele defendia, com unhas e dentes, a organização social e sua capacidade de instalar os hospitais de campanha.

O único que teve estômago de peitar o Iabas, em uma reunião do comitê de crise, foi o então secretário Cleiton Rodrigues, ao cobrar um prazo final para a entrega dos hospitais que nunca ficavam prontos. Este deixou claro que não tinha rabo preso com tal maracutaia. Tudo isso filmado.

Fala-se da reabilitação da Unir Saúde, realizada pelo próprio punho do "servo de Deus" Wilson Witzel.

O jogo é mais sujo do que se imagina. A Unir era pivô de uma batalha travada pelos dois saqueadores do Governo. De um lado do ringue, o “sofrido” pastor da Assembleia de Deus Everaldo Pereira, patrão tanto de Witzel e como da ex-primeira-dama Helena. Do outro lado, Lucas Tristão, o apaixonado ex-aluno e provedor (até de forma confessa, como fez no Tribunal Misto) de renda do seu sócio, o governador. Tristão ciscava na saúde via seu irmão siamês Mario Peixoto, o maestro da Unir.

Edmar, a serviço do sumido Torres, e Everaldo tentaram tirar a OS peixotiana da jogada e trazer o seu espólio contratual para a quadrilha. Está aí o esforço de Edmar em considerar a Unir inidônea. Nesse caso, foi Witzel quem a reabilitou, para manter o equilíbrio das forças que o alimentavam. Ao assinar de próprio punho, fez a felicidade de muita gente, entre eles Tristão, Peixoto e da intocada figura de Antônio Vanderler de Lima.

Esse episódio da Unir parece as películas de faroeste italiano, em que não havia mocinhos, só bandidos.

Vale lembrar que Tristão, além de prover Witzel com luvas, fez corretagem de contratos da inocente Helena como advogados com clientes conectados no seu universo de “articulações”. Contratos esses achados nos e-mails de Witzel e na memória da impressora de Tristão.

O que assusta é ver esse episódio hediondo de hospitais de campanha fantasmas, de respiradores superfaturados extraviados e do uso de mais de R$ 1,2 bilhão de recursos destinados a salvar vida ser reduzido agora à percepção de uma troca de titularidade do Guanabara. A luta por governança e por quem será o governador não pode eclipsar os crimes cometidos com os recursos públicos que deveriam salvar vidas.

É este o caso principal. Cadê o movimento do legislativo federal para enquadrar como hediondos os crimes cometidos contra a Saúde? Cadê o Judiciário que julga os crimes das negociatas que surgiram na pandemia?

O Coronavírus ainda está bem vivo entre nós e usou a falta de humanidade desses prepostos do inferno como seu aliado. Em janeiro de 2021, deveremos enfrentar um colapso da saúde que não tivemos em 2020. Que legado desses bilhões torrados nos hospitais de campanha fantasmas foi deixado?

Wilson, Edmar, Everaldo, Gabriell, Mario, Helena, Lucas, Édson, além de duas dúzias de bagrinhos, são protagonistas de um verdadeiro crime contra a humanidade.

Foram cruéis em usar uma tragédia planetária, só comparada às duas últimas grandes guerras, como uma oportunidade de ganhar dinheiro e fazer recursos, seja para enriquecimento pessoal ou para a megalomania de um sonho presidencial.

A realidade é que chegamos a mais de 25 mil mortos no Estado do Rio, vítimas da Covic-19. São eles que não nos deixam esquecer e, principalmente, perdoar esses rastejadores encontrados na raça humana. A história será implacável com esses ratos, da mesma forma que foi com os nazistas, que aproveitaram o Holocausto para se apoderar dos bens e espólios dos judeus enviados para os campos de concentração.

Os mortos não esquecem e cobram que os crimes cometidos por esses crápulas não sejam reduzidos a penas leves, nem que consigam a liberdade em troca de torpes delações.

*Cláudio Magnavita é diretor de redação do Correio da Manhã