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Berlim na batucada

Por Rodrigo Fonseca, especial para o Correio da Manhã

Responsável pela consagração internacional de “Tropa de elite” (em 2008), “Central do Brasil” (em 1998) e “Ilha das Flores” (1990), o Festival de Berlim chega aos 70 anos, no próximo dia 20, com uma esquadra brasileira de 19 filmes e duas séries de TV em seu cardápio de 2020, espalhando-os por suas diferentes seções, incluindo uma produção de São Paulo entre os concorrentes ao Urso de Ouro: “Todos os mortos”, de Caetano Gotardo e Marco Dutra. 

Nos anos 2010, estivemos no páreo do prêmio em 2014, com “Praia do Futuro”, de Karim Aïnouz, e em 2017, com “Joaquim”, de Marcelo Gomes. Só que, ano a ano, nosso cinema sai de lá laureado: em 2019, “Espero a tua (re)volta”, de Eliza Capai, ganhou o Prêmio da Anistia Internacional, e “Rise”, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, ganhou o com o Prêmio Audi de Curtas. As chances de premiações este anos são mais altas, com medalhões como Paula Gaitán (com “Luz nos Trópicos”, no Fórum) e o próprio Karim (com “Nardjes A.”, no Panorama), e jovens talentos como Gil Baroni (“Alice Júnior”), Luciana Mazeto e Vinícius Lopes (“Irmã”) e Caru Alves de Souza (“Meu nome é Bagdá”).

Na vitrine Berlinale Series, na ala de mercado, fala-se português com os sotaques de brasilidade com “Desalma”, de Ana Paula Maia, e “Onde está meu coração”, de George Moura e Sergio Goldenberg. E a ocupação verde e amarela do evento, que está trocando de comando - saiu seu presidente, Dieter Kosslick, e entraram Mariette Rissenbeek, como diretora executiva, e Carlo Chatrian, no posto de diretor artístico -, inclui ainda a presença do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho (de “Aquarius”), ainda em cartaz no Brasil com “Bacurau”, no júri. Quem comanda os jurados será o ator inglês Jeremy Irons, ganhador do Oscar por “O reverso da fortuna”, em 1991.

Há 18 títulos em concurso pelo Urso dourado, que serão avaliados após a projeção hors-concours do longa de abertura: “My Salinger Year”, produção canadense com a atriz Sigourney Weaver, dirigida por Philippe Falardeau.

O cantinho de Brasil no bloco competitivo evoca o racismo e a sororidade numa perspectiva histórica. “Todos os mortos” tem Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Gilda Nomacce e Andréa Marquee no elenco. Sua trama se passa na São Paulo de 1899 onde fantasmas do passado ainda caminham entre os vivos, quizilando as mulheres da família Soares. Elas são antigas proprietárias de terra, que tentam se agarrar ao que resta de seus privilégios. Para Iná Nascimento (papel de Mawusi), que viveu durante muito tempo escravizada, a luta para reunir seus entes queridos em um mundo hostil a conduz a um questionamento de suas próprias vontades. Entre o passado conturbado do Brasil e o presente cheio de intolerância, essas mulheres tentam construir um futuro próprio.

Nota-se, pela escolha dos longas em disputa este ano, um sinal explícito de renovação do festival, que segue até 1º de março. É uma forma de espanar a poeira de decepção de suas edições mal curadas de anos recentes, sobretudo a controversa entrega do Urso a “Não me toque”, da romena Adina Pintilie, em 2018.

Realizadoras

Na semana que vem, Mariette e Chatrian abrem as portas para medalhões e promessas classe AA, com várias mulheres realizadoras na ribalta, como a atual estrela da cena  indie  dos Estados Unidos: Kelly Reichardt (de “Movimentos noturnos”), que foi jurada em Cannes, em 2019, e chega para ganhar com o faroeste “First Cow”). Além dela, tem a inglesa Sally Potter (de “Orlando, a mulher imortal”), concorrendo com “The roads not taken”, que pode satisfazer outra carência da maratona cinéfila alemã: trazer grandes estrelas para o tapete vermelho do Berlinale Palast.

Só que a curadoria ainda ataca de autores de ficção do quilate do francês Philippe Garrel (na ativa desde 1968, e famoso por cults como “Amantes Constantes”) e do taiwanês Tsai Ming-Liang (ganhador do Leão de Ouro em 1994, com “Vive L’Amour”), além de acolher um documentário inédito do cambojano Rithy Pahn (de “A imagem que falta”): o filme “Irradiated”, sobre sobreviventes de conflitos políticos.

Dos realizadores de vasta ficha de bons serviços prestados às narrativas escalados para concorrer, a grife de maior adoração é Abel Ferrara (“Vício Frenético”), nova-iorquino de 68 anos, encarado sempre como um maldito, pelas abordagens viscerais da moral ocidental. Ele volta a campo com “Sibéria”, estrelado por Willem Dafoe.

E a prata da casa não foi esquecida: Christian Petzold, maior cineasta em atividade na Alemanha nos últimos 20 anos, volta com “Undine”, brincando como o mito das sereias. Só não houve espaço, na caçada ao Urso, para títulos da Netflix, deixando evidente uma ofensiva da indústria do audiovisual ao  boom  do streaming, que já havia encontrado um terreno fértil pra si na capital alemã.

Nas mostras paralelas, os principais destaques são a projeção de “Pinóquio”, uma superprodução à italiana de Matteo Garrone (“Gomorra”), com Roberto Benigni (de “A vida é bela”) como Geppetto, e a animação da Pixar “Dois Irmãos: Uma jornada fantástica” (“Onward”), de Don Scanlon, dublada por Tom Holland e Chris Pratt. E tem Johnny Depp em “Minamata”, de Andrew Levitas. Ele dá vida ao fotógrafo W. Eugene Smith (1918-1978), famoso pela natureza ensaística de seu trabalho, sobretudo na documentação de guerras. O filme aborda sua incursão ao Japão, onde ele registrou vítimas de envenenamento por mercúrio. A presença de  Depp  deve elevar a temperatura da Berlinale.

Em competição

“First cow”, de Kelly Reichardt (EUA); “Berlin Alexanderplatz”, de Burhan Qurbani (Alemanha); “Schwesterlein” (“My little sister”), de Stéphanie Chuat e Véronique Reymond (Suíça); “Siberia”, de Abel Ferrara (EUA); “Le sel des larmes”, de Philippe Garrel (França); “The roads not taken”, de Sally Potter (Reino Unido); “Undine”, de Christian Petzold (Alemanha); “The woman who ran”, de Hong Sangsoo (Coreia do Sul); “El prófugo”, de Natalia Meta (Argentina); “Favolacce  (Bad Tales)”, de Damiano & Fabio D‘Innocenzo (Itália); “Effacer l’historique”, de Benoît Delépine e Gustave Kervern (França); “Todos os mortos”, de Marco Dutra e Caetano Gotardo (Brasil); “DAU. Natasha”, de Ilya Khrzhanovskiy e Jekaterina Oertel (Ucrânia); “Sheytan vojud nadarad” (“There is no evil”), de Mohammad Rasoulof (Irã); “Irradiés” (“Irridiated”), de Rithy Pahn (Camboja); “Never rarely sometimes always”, de Eliza Hittman (EUA); “Rizi  (Days)”, de Tsai Ming-liang (Taiwan); e “Volevo nascondermi”, de Giorgio Diritti (Itália).

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