O arquiteto de canções imortais

Por Affonso Nunes

A pandemia do coronavírus adiou, por tempo indeterminado, a 32ª viagem que o compositor, instrumentista e produtor Roberto Menescal faria ao Japão. Aos 82 anos, ele continua ativo e levaria com ele os colegas Carlos Lyra, João Donato e Marcos Valle para apresentações do CD “Os Bossa Nova”, que o quarteto lançou ano passado. Um dos pais da Bossa e autor de mais de 400 músicas gravadas no mundo inteiro, o autor de “O barquinho” Menescal tem milhagem sufi ciente para contar histórias por dias e dias a fi o em meio ao oceano da Música Popular Brasileira. Apesar de ser personagem de inúmeros casos e estar sempre acessível para entrevistas e relatos não havia um livro que compilasse sua basta contribuição á nossa música e ao jeito de ver o Brasil. A jornalista, pesquisadora e historiadora Claudia Menescal, prima do artista, acaba de concluir “Roberto Menescal – um arquiteto musical”, que está para ser lançado tão logo as pessoas possam voltar a ter convício social. 

O projeto surgiu há três anos, quando Claudia começou a ajudar Menescal a organizar seu acervo pessoal e descobriu raridades, entre fotos, gravações, discos, partituras, cartas e documentos antigos. O CORREIO DA MANHÃ teve acesso às provas fi nais da obra a ser lançada pela Futurama Editora. São 288 páginas de uma biografia não convencional, recheada de fotos (300!) e depoimentos de amigos e artistas que conviveram com o artista. A obra é dividido em mini-crônicas que pinçam histórias de Menescal, algumas bastante conhecidas e outras nem tanto. Uma delas é que seu encontro com Tom Jobim foi completamente ao caso, ainda que o jovem violinista autodidata Roberto fizesse um esforço grande para ir aos lugares onde o compositor estaria. Num belo dia, Tom estava na porta da escola de violão que ele mantinha com Carlos Lyra e com uma proposta.

- Havia quase um ano que eu tentava falar com Tom, mas nunca conseguia. Fui a uma dezena de festas, tentava afogar minha timidez em copos de cuba-libre. Ficava embriagado e não conseguia obter qualquer resultado. E naquele momento eu estava sóbrio e diante do meu ídolo. Ele disse que precisava de mim para participar de uma gravação para o filme Orfeu Negro.

A decisão de jogar a faculdade de arquitetura pro lado e viver de música se firmou ali e deu no que deu. A vida familiar, a juventude em Copacabana - quando morava no prédio em cima da Galeria Menescal, construída pelo tio engenheiro, Humberto Menescal — os primeiros encontros com a turma da Bossa Nova, as musas inspiradoras, os amigos, as parcerias inesquecíveis e seu período como executivo de uma das gravadoras mais importantes do país estão no livro.

- Nossa diferença de idade parecia muito maior quando eu era pequena. Mesmo assim, acompanhei a carreira dele desde o início. Meu pai me contava tudo. Com o tempo, ficamos mais próximos e amigos. O livro é uma homenagem – explica Claudia, que acabou estabelecendo uma rota de navegação além do acervo pessoal do primo.

- Pesquisei outras fontes: jornais, revistas, vídeos antigos, livros, entrevistas, acervos de museus e institutos culturais. E entrevistei informalmente pessoas que conviveram e trabalharam com ele - explica a autora.

Menescal conta que apoiou a iniciativa desde que a ideia lhe foi apresentada, mas assegura que só vai ler o livro depois que ele for lançado. Democrático e generoso, provavelmente vai se emocionar com os depoimentos que a prima reuniu de artistas, alguns deles apadrinhados por ele como Nelson Mota, Antonio Adolfo, Leila Pinheiro, Cris Delanno, Wanda Sá e Ruy Castro, entre tantos outros, que falam sobre amizade, generosidade, carreira, encontros e relação profissional.

Sua trajetória profissional é dividida em duas fases bem distintas. A do jovem instrumentista que participou de um movimento revolucionário da música brasileira, que só foi reconhecido pra valer no Brasil após a épica apresentação do Carneggie Hall, em 1962, da qual Menescal quase não participou para ir praticar pesca submarina em Cabo Frio (foi convencido a ir por Tom Jobim). A outra foi o início de sua carreira como produtor musical na extinta gravadora.

Elenco, assumir a direção musical de Elis Regina e depois assumir a direção artística da Polygram no Brasil.

Conhecer e lidar com um cast de tantos artistas das mais variadas origens e formações abriu um horizonte de possibilidades, forjando uma das características destacadas por quem convive com ele.

- Eu aprendi a escutar, ver o valor das coisas. No tempo da Polygram muitas vezes eu chegava com um disco em casa e a Yara (sua mulher) perguntar “Desde quando você ouve isso?”. Pois eu ouço de tudo - conta Menescal, que aproveita para elogiar uma estrela da novíssima geração, Anitta.

Foi sob a gestão de Menescal que Chico Buarque de Holanda saltou de uma média de 15 mil ábuns vendidos para 350 mil (“Construção”, de 1971) - o produtor aceitou gravar a faixa-título de quase sete minutos (impensáveis para a época) e ainda incluir uma orquestra regida por Rogério Duprat. Ou quando fez com que Emílio Santiago saltasse de patamar semelhante para 850 mil cópias vendidas no primeiro álbum da série “Aquarela brasileira”.

- O Emílio não queria gravar aquele repertório. Dizia que não para o público dele. Saímos da Polygram na mesma época e ele, finalmente, aceitou a sugestão. A carreira dele explodiu ali - lembra Menescal, acrescentando que 90% dos artistas não costumam aceitar as sugestões de produtores.

A saída da Polygram se deu no início da década de 1980.

- Aquela geração de presidentes de gravadoras que foram músicos ou produtores foi dando lugar a executivos, gente do administrativo. Trocaram a clave de sol pelo cifrão. Já não era mais para mim – explica. Menescal sustenta que seu início como produtor se deu num momento pós-Bossa Nova que eclodiu na redescoberta do samba, na chegada da geração tropicalista, no Clube da Esquina, na Jovem Guarda, ou seja, a ramificação da música brasileira.

- Era tudo experimental. Não havia restrição para por dezenas de músicos no estúdio para produzir uma canção - compara.

Hoje, do alto de sua experiência e à frente da Albatroz Music, selo que criou em 1992, continua mais ativo do que nunca. Tocando, compondo, fazendo shows, produzindo discos extremamente bem cuidados, lançando novos nomes da MPB e atento às novidades, disseminando o gosto pela boa música nas novas gerações.