Cultura | Sob a batuta de Chiquinha Gonzaga

Qualquer mulher que faz música nesse Brasil tem como madrinha e inspiração máxima a pioneira Chiquinha Gonzaga. Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a lendária compositora carioca recebe justa homenagem com a criação de um grupo que a deixaria em êxtase: a Orquestra Sinfônica Juvenil Carioca Chiquinha Gonzaga, formada exclusivamente por crianças e jovens, todas alunas da Rede municipal de ensino do Rio de Janeiro.

Composta por 47 integrantes, a orquestra faria sua estreia em concerto nesta segunda, com participação especial da cantora Elba Ramalho e regência de Priscila Bonfim. Mesmo com transmissão online, o evento foi cancelado em função das medidas restritivas adotadas pela Prefeitura do Rio. Com o batismo da nova orquestra - mais um bom fruto do programa Orquestra nas Escolas, iniciativa da Secretaria Municipal de Educação - com o nome da primeira maestrina do país, Chiquinha Gonzaga, atualizamos a mulher à frente do seu tempo que usou sua música como instrumento de voz, liberdade e oportunidade. E a estreia no Dia Internacional da Mulher simboliza a luta feminina e incentiva a reflexão sobre questões de equidade de gênero. “A experiência da música e da arte é um espaço para se ampliar horizontes nas mais variadas dimensões, estéticas, culturais, históricas, políticas, dentre tantas outras”, comenta Moana Martins, coordenadora do programa.

A implantação da Orquestra Sinfônica Chiquinha Gonzaga, acrescenta, pretende fortalecer as políticas de equidade de gênero, que começa de maneira concreta desde a figura da maestrina - atividade predominantemente relacionada ao universo masculino -, como na representatividade feminina nos mais diversos instrumentos da orquestra. “Pretendemos desconstruir o estereótipo de que meninas tocam violinos, violoncelos e flautas, para que possam tocar outros instrumentos”, destaca.

Primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil, Chiquinha Gonzaga (1847-1935) sofreu todo tipo de preconceito, mas transformou a sua música como instrumento de voz, liberdade e oportunidade. Não apenas por ser mulher e musicista. Francisca Edwiges Neves Gonzaga era afrodescendente, filha de uma escrava alforriada e de um militar de família tradicional. Mais que a mistura racial, em seu DNA estava o gene da transgressão e do talento necessários para abrir alas (e portas) por todo o país.

Chiquinha iniciou cedo os estudos musicais sob a orientação do maestro Elias Álvares Lobo (1834-1901) e já aos 11 anos compunha suas primeiras peças. A gênese de sua formação artística na infância é marcada pelo contato exclusivo com o universo da chamada música erudita e pela submissão aos valores morais do Rio de Janeiro imperial, que destinava às mulher papéis atrelados ao casamento e à maternidade. O próprio ato de tocar piano tinha perfil notadamente doméstico.

Em 1863, Chiquinha casa-se com um oficial da Marinha Mercante, de quem se separa seis anos depois. Na condição de mulher separada, é expulsa de casa. O fim do casamento dá início a um novo ciclo de vida, de questionamento à sociedade patriarcal, o que influenciaria para sempre sua relação com a música. para se sustentar, passou a lecionar piano. Por intermédio do flautista Antônio da Silva Callado (1848-1880) trava contato com a cena musical emergente da cidade e o repertório popular. Passa a integrar o conjunto de Callado, o Choro Carioca. Formado por flauta, cavaquinho e dois violões, o grupo inovou ao acrescentar o piano de Chiquinha. Nessa época, o choro ainda não representa um gênero musical, mas uma forma chorosa de interpretar obras europeias, como tangos, polcas e valsas.

LUTA PELA ABOLIÇÃO

Com 30 anos, edita sua primeira música: a polca para piano “Atraente” (1877) e abre o caminho para a fama. Na década de 1880, usou o dinheiro da venda das partituras de suas composições para apoiar os movimentos abolicionista e republicano e financiar a libertação de negros escravizados. Chiquinha Gonzaga representa a fusão entre a música europeia e a brasileira. Ao abrasileirar a música tocada nos salões na segunda metade do século 19, abrindo caminho para outros compositores. O êxito de seus trabalhos lhe permite o ingresso no teatro musicado, o teatro de revista. Na década de 1890, compõe o hino carnavalesco “Ó Abre-Alas” (1899), para embalar o desfile do cordão Rosa de Ouro. É a primeira composição criada para o carnaval carioca.

É, portanto, gratificante, ver jovens estudantes se unindo em torno de uma orquestra que Chiquinha Gonzaga certamente gostaria de reger.