Cinema | Letras cheias de som e de fúria

Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã

Preparado para estrear o espetáculo “Língua Brasileira”, inspirado em Tom Zé, quando a pandemia prejudicou a rotina da produção artística nacional, Felipe Hirsch encontrou na streaminguesfera um abrigo para seu mais potente exercício como realizador de longas-metragens em sua trajetória multimídia de teatro e cinema: “Severina” (2017) agora tem lar no Telecine Play.

Numa simples busca de Google, chegamos a essa joia lançada no Festival de Locarno, há quatro anos, e agraciada com uma menção honrosa no Festival de Milão. Há nela um atestado do vigor poético da obra desse encenador e cineasta nas veredas audiovisuais. Seu motor de arranque é a obra do escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa.
Múltiplas peças, a partir de “Baal Babilônia” (1993), fizeram dele, nascido Carlos Felipe Lopes Werneck Hirsch, um dos mais necessários encenadores do teatro brasileiro. Nos filmes, ele já havia brilhado numa parceria com a colega cenógrafa Daniela Thomas em “Insolação”, de 2009. Mas há um espetáculo dele que dialoga de maneira mais direta - mais até do que seu longa-metragem anterior – com “Severina”: a montagem de “Temporada de gripe”, de 2003, aclamada em sua passagem pelo Festival de Curitiba. Nela, a partir de um texto de Will Eno, temos um ambiente hospitalar, num futuro sem emoções, onde um homem sem nome é internado com uma estranha doença: a paixão. Há um sintoma temático similar ao dessa peça no longa que Hirsch filmou no Uruguai, em espanhol, numa troca criativa com o produtor Rodrigo Teixeira.

QUIXOTE PÓS-MODERNO

A paixão também adoece o protagonista desta inquietante história sobre Quixotes pós-modernos: bibliófilos que dão aos livros autonomia plena sobre sua existência, até uma Dulcineia de carne, osso e caráter duvidoso aparecer. No caso, Ana (Carla Quevedo), enigmática mulher cuja perversão é roubar livros e amolecer suas vítimas com sorrisos homicidas. O hospital aqui é uma Alexandria de esquina: uma livraria lotada de tesouros verbais.
Há aqui, nas garras da misteriosa Ana, um Cavaleiro da Triste Figura, só que mais realista do que o nobre de La Mancha esquadrinhado por Cervantes. O tal sujeito se chama apenas R. e olha para o mundo com a ressaca dos que escondem gigantes sob a forma de moinhos de vento no peito. R. é vivido por Javier Drolas, ator argentino de numerosas ferramentas dramáticas, ocultas sob suas feições de galã atormentado.
Magnética, a presença de Hendler costura pra dentro do doído “Severina” mais referências cinematográficas da América Hispânica ainda. E a chave é essa. Este é um filme sobre o imaginário literário e amoroso de um continente hablante da língua de Jorge Luis Borges: mas um imaginário que tenta transcender o melodrama.
Não estamos diante de um folhetim regado a lágrimas, estamos, sim, numa América Latina fria, de veias abertas, cujas lágrimas secaram diante da falência econômica. De úmido só restou a saliva que rega as palavras.
E restou a potência técnica de Hirsch para investigar a inquietude nossa de cada dia, aqui potencializada pela fotografia do português Rui Poças, um mago da luz.