Ancine segura verba de edital e prejudica finalização de filmes, relatam cineastas

Por:João Perassolo

Um imbróglio envolvendo verba não liberada de um edital está prejudicando a finalização do novo filme do diretor André Klotzel e também afetou a etapa final do documentário "Jair Rodrigues: Deixa que Digam", de Rubens Rewald, segundo relatos dos dois diretores.

O edital em questão, conhecido como 04/2019, foi pensado e construído pela Spcine, a agência paulistana de fomento ao cinema, e contava com verba tanto da Spcine quanto do Fundo Setorial do Audiovisual, o FSA, de responsabilidade da Ancine, a Agência Nacional de Cinema. A contratação dos contemplados ficava a cargo da Ancine.

Klotzel -diretor de "A Marvada Carne" e "Memórias Póstumas de Brás Cubas"- foi contemplado com R$ 524 mil no edital, dinheiro que cobriria boa parte da finalização de seu longa inédito "Sem Pai Nem Mãe", estrelado por Alexandre Nero. A verba seria usada sobretudo para a liberação de direitos da trilha sonora, composta por clássicos da MPB associados aos anos de chumbo e que dão consistência à narrativa do filme, segundo o diretor.

Ele já captou cerca de R$ 4,6 milhões para o longa, a que a reportagem teve acesso. O filme está montado há dois anos e meio.

Rewald, o diretor do documentário sobre Jair Rodrigues, ganhou R$ 200 mil no edital. Quando percebeu que o dinheiro não seria liberado, ele conta, resolveu terminar o filme por conta própria, "de uma forma não ideal", ao custo de R$ 100 mil. "Jair Rodrigues: Deixa que Digam" foi exibido na edição de 2020 do festival É Tudo Verdade e deve entrar no circuito comercial neste ano.

Um terceiro cineasta também foi afetado, de acordo com documentos da Justiça, mas ele preferiu não falar com a reportagem.

A Ancine não quis se manifestar. A Spcine afirma que pediu diversas vezes à Ancine que contratasse os filmes contemplados.

O edital em questão era automático, ou seja, não havia uma comissão julgadora, de modo que os filmes que se inscreveram deveriam ser beneficiados. Contudo, segundo relatos dos diretores e de documentos da Justiça, a Ancine não autorizou a liberação do dinheiro alegando que os três filmes não se enquadravam numa das regras do FSA.

A regra afirma que um filme não pode receber verbas de mais de dois editais seletivos financiados pela Ancine, o que era o caso do filme de Klotzel e do de Rewald, que já haviam ganhado editais anteriores após passarem por processos seletivos.

Klotzel entrou na Justiça com um mandado de segurança contra a Ancine. Ele alega que seu longa não quebrou o regulamento do FSA, dado que o edital da Spcine era automático, não seletivo, e que ele era de responsabilidade da prefeitura de São Paulo, não da Ancine. O pedido não foi acolhido.

No meio dessa história, que se arrasta desde 2019, um servidor do alto escalão da Ancine, Rodrigo Camargo, fez um parecer de cinco páginas favorável à liberação da verba do edital para o filme de Klotzel. Segundo o cineasta, tal avaliação foi ignorada por Vinicius Clay e Alex Braga, diretores da Ancine que tomariam a decisão final. A agência acabou arquivando o processo.

Numa das reuniões da Ancine em que se optou pelo arquivamento, disponível no YouTube, o diretor Edilásio Santana Barra Junior afirma que "realmente é complicado a concentração de recursos em um projeto", se referindo ao longa "Sem Pai Nem Mãe".

"Sei que mal ou bem passou de três editais pro mesmo projeto, uma concentração ao cúmulo, você deixa de dar oportunidade a outras pessoas da própria região", ele diz. O parecer favorável ao filme não é mencionado na reunião.

O resultado é que "Sem Pai Nem Mãe" está quase pronto, mas paralisado e sem perspectiva de ser finalizado, embora tenha consumido milhões de reais de recursos públicos. O diretor não pode entrar em novos editais e afirma temer ficar com fama de inadimplente.

A Spcine afirmou que "fez diversos contatos com a Ancine solicitando que efetuassem as contratações dos projetos selecionados" no edital. A Ancine não se manifestou.

A Spcine afirma ainda que faz a intermediação do diálogo entre os proponentes e a Ancine e acompanha o processo de contratação, apesar de não firmar contrato com os filmes –isso fica a cargo da entidade federal.

Klotzel diz estar temeroso de levar a pecha de "filme que não foi concluído". "Nada me tira da cabeça que isso tem um componente dessa perseguição bolsonarista, essa caça bolsonarista", ele diz, porque seu filme tem conteúdo político. A Ancine também não respondeu ao questionamento da reportagem sobre esse ponto.

"Sem Pai Nem Mãe" é uma comédia com pitadas de drama e conta a história de Artur, um escritor e comediante de stand-up que produz um livro no qual narra o assalto a um banco por personagens que se opunham à ditadura militar e defendiam o socialismo e a expropriação de bens privados. Em paralelo, ele se envolve com uma moradora da periferia de São Paulo que sonha em ficar famosa dançando funk.

As idas e vindas do edital da Spcine aconteceram num momento em que a diretoria da Ancine respondia a processos por improbidade administrativa, em ação movida pelo Ministério Público e da qual Klotzel foi um dos articuladores.

Além disso, a Ancine esteve envolvida no caso da paralisia do FSA, no qual R$ 724 milhões que seriam investidos em projetos de cinema e TV ficaram travados porque o comitê gestor do fundo não se reuniu.