Em 'This Is Not America', Residente critica os EUA, mas se dirige ao Grammy

Por: Felipe Maia

Uma "diss", no hip-hop, é uma música feita para atacar um par que seja malquisto por quem escreve a letra, como outro rapper. O porto-riquenho Residente lançou duas dessas nas últimas duas semanas. Um dos principais ganhadores do Grammy Latino, o artista não poupou linhas em "BZRP" nem em "This Is Not America". Mas se aquela tem endereço claro –o desafeto e popstar colombiano J Balvin–, a quem esta última se dirige?

A faixa é um aceno contrariado a "This is America", clipe do rapper Childish Gambino que chegou a quase 900 milhões de visualizações no YouTube em 2018. Neste plano-sequência, o norte-americano escancara as estruturas racistas dos Estados Unidos com letra, imagem e dança. Esta rara astúcia no jogo de cena inflamou o debate sobre racismo no país paralelamente a uma enorme busca por símbolos escamoteados no vídeo.

Tal espécie de gamificação do texto pop, cada vez mais comum nas redes sociais, também surgiu no vácuo de "This Is Not America".

Compreender o clipe de Residente nesse caça aos ovos de páscoa é útil, mas não traz à mesa sua dimensão total –entre acertos e deslizes.

Muito além do título, o artista porto-riquenho se opõe ao umbiguismo estadunidense traduzido aqui no uso do termo "América" para definir um só país em vez de todo o continente. No primeiro quadro do clipe, por exemplo, ele revisita o chileno Alfredo Jaar que, em 1987, expôs em Nova York videoarte com os mesmos dizeres que hoje intitulam sua canção-manifesto.

Em parceria com o diretor Greg Ohrel, nome em ascensão no hip-hop francês, Residente desfila seu misto de utopia e tragédia panamericana –crianças indígenas sobre embalagens do McDonald's, cholas guerrilheiras, zapatistas em balaclavas e maras salvadorenhos, Bolsonaro comendo um bife malpassado e até mesmo uma Estátua da Liberdade com a figura de um nativo norte-americano.

É uma cama muito bem feita para o instrumental criado por Jeffrey Peñalva. Parceiro de longa data do rapper, o produtor usa poucas batidas sintéticas enquanto dá ênfase a uma série de tambores em uníssono e ao coro redobrado das irmãs cubanas do Ibeyi. A batida enxuta, de poucas texturas e com acordes simples e potentes, reforça o tom conclamatório da música e inflama ainda mais a letra do rapper.

Residente tem aquilo que, no rap, se chama caneta. Sabe juntar figuras de linguagem, contar histórias de forma sucinta e fazer comparações rápidas com especial talento para as "punchlines": as frases que fecham estrofes, como quando canta que machetes cortam cana e também cabeças. Filho de atriz, estudou nos Estados Unidos e logo nos primeiros anos de carreira arrancou do New York Times a alcunha de primeiro reggaetonero intelectual de Porto Rico.

Essa distinção se tornaria mais evidente nas últimas décadas. Enquanto o reggaeton se tornava um gênero maior e mais popular, Residente se atarracava a ideias que julgava incompatíveis com a música que o tinha visto nascer. Nessa distinção não cabiam sons para bailar, como o sucesso "Atreve-te-te", assinado por ele e o irmão no duo Calle 13. Ganhavam espaço faixas como "Latinoamérica", de 2011.

A faixa expunha o flagelo latino-americano dramaticamente. Fazia sentido. O início da última década marcava o fim da guinada à esquerda do continente, botando fim aos sonhos de uma esquerda jovem. René se juntava aos cronistas de sonhos latino-americanos inatingidos, de Manu Chao a Chico César. Ao mesmo tempo, o rapper começava a acumular prêmios no Grammy Latino. Sua retórica intelectual e "callejera" –de rua– agradava a jurados e fãs de hip-hop.

Sem nunca ter abandonado temas de luta, Residente se manteve pouco ativo musicalmente nos anos 2010. Fez documentários em que buscava uma certa autenticidade em si e no mundo: o verdadeiro, aquilo que não se vende, o povo. É a mesma tradição que volta em "This Is Not America" com fúria. Hoje, ela soa dissonante, inventada.

Não que a agenda política de René esteja fora de senso –ela é tão ou mais necessária do que antes. Sua abordagem, contudo, parece tocar mais à juventude que se tornou adulta com o rapper, com seus sonhos largados pelo caminho. Seu rap impacta, mas parece falar mais ao júri do Grammy.

Essa dissonância não é exclusividade de René. Há hoje uma fratura grande na indústria do hip-hop entre cantar ideias que estão no âmago do movimento e exibir sua veia mais pop, inclusive no Brasil.

A premissa de que críticas sociais e música popular não caminham juntas é a maior causa disso –e também ajuda a compreender o ataque de Residente a J Balvin, a quem julga ser um artista menor. É um engano. Assim como canções de luta não são feitas apenas de letra, músicas populares não são vazias de significado.

Em 2014, Eduardo Galeano disse que não voltaria a ler seu clássico "As Veias Abertas da América Latina" pois achava o texto tedioso. Se a América Latina de Residente ainda ecoa as lutas de suas letras, sua música talvez pudesse ecoar para mais latino-americanos. Mais valeria um jovem a seu lado que um Childish Gambino ofendido.