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Coronavírus pode mostrar o risco de políticos que desprezam ciência, diz economista

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

A crise social e econômica acarretada pelo coronavírus poderá ter o efeito colateral de alertar a população para o risco de apoiar políticos que desprezam evidências científicas.

O diagnóstico é de Rodrigo Soares, professor da Universidade Columbia e um dos economistas brasileiros mais respeitados no meio acadêmico, com estudos publicados em periódicos importantes, como o American Economic Journal: Applied Economics e a American Economic Review.

"Uma parte da população tem olhado para o discurso anticientífico com um certo cinismo. Ela pensa: se a economia estiver indo bem, essas bobagens não importam muito", diz.

O problema é que a pandemia terá um impacto econômico severo, especialmente para grupos mais vulneráveis, como trabalhadores informais -que, diz Soares, sofrerão com uma queda de demanda.

"Não tenha dúvidas de que a mortalidade por motivos não relacionados ao coronavírus vai aumentar", afirma.

Segundo ele, os governantes deveriam estar atentos a essas questões e não minimizar os riscos, como fizeram, inicialmente, os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro.

Segundo ele, ter grupos no poder "totalmente ignorantes e refratários a evidências" pode ter consequências graves.

Apesar disso, Soares vê no Brasil algumas vantagens, como a existência de um sistema de saúde unificado e o fato de que o Ministério da Saúde demonstrou, desde o início, estar atento à epidemia.

Do ponto de vista econômico, segundo ele, cabe aos governos proteger os setores econômicos e segmentos sociais mais frágeis, com medidas como o acesso facilitado ao crédito. Falar em reativar a economia, neste momento, não faz sentido, diz.

"Isto não é uma crise financeira. Como você vai reativar a indústria aérea se a gente não quer que as pessoas voem?"

Autor de trabalhos que analisam a interação da economia com áreas como saúde e segurança pública, Soares retornará ao Brasil para lecionar, a partir de julho, no Insper, em São Paulo.
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PERGUNTA - Como a economia tem sido contagiada pela crise do coronavírus?

RODRIGO SOARES - Qualquer doença gera um impacto econômico direto. Algumas pessoas doentes não vão trabalhar, vão precisar do hospital. Algumas morrerão. Isso tudo impacta os recursos. No caso do coronavírus, o mais difícil, por enquanto, é o esforço para tentar parar a infecção. Ao fechar fábricas, você está falando que trabalhadores saudáveis não devem ir trabalhar. Está fechando serviços.

Para as companhias aéreas, nem é preciso dizer que isso terá proporções dramáticas. Deverá ser o maior choque da história, porque, na Segunda Guerra Mundial, não havia transporte aéreo como hoje. O fechamento dos voos entre Estados Unidos e Europa continental terá um impacto gigantesco para essa indústria. Eu, honestamente, nunca imaginei que fosse ver isso na minha vida.

P - Isso cria um dilema de política pública?

RS - O dilema sempre está presente em qualquer escolha de política pública. Se a reação está sendo exagerada ou não, a gente ainda não sabe. Você tem informações muito díspares. Isso é natural porque é um novo vírus. A reação grande se deve ao entendimento de que a transmissão se dá de forma muito rápida, e os casos da China e da Itália têm mostrado que o impacto imediato sobre o sistema de saúde pode ser, de fato, gigantesco.

Mas as pessoas precisam entender que os impactos de parar viagem, diminuir atividade econômica também serão negativos. Tem gente que será afetada de forma muito extrema, com impacto significativo inclusive sobre sua saúde.

Você está limitando a movimentação das pessoas. A quantidade de bens disponíveis será reduzida. O acesso a trabalho e renda de pessoas um pouco mais frágeis será reduzido. Isso vai impactar o consumo dessas famílias, o que pode também afetar a saúde delas. Contemplar esse "trade-off" [na escolha de uma política pública em detrimento de outra] não é necessariamente uma falta de consciência social sobre a dimensão do problema.

P - Qual é o pior cenário econômico possível?

RS - Acho que é o caso da Itália se repetir no Ocidente. Ou seja, a epidemia avançar muito rapidamente, com um grau de seriedade bastante elevado. Isso geraria uma sobrecarga grande no sistema de saúde público. Na Itália, o cenário parece de guerra. Num caso como esse, estamos falando de a produção mundial colapsar. A chance de ter um impacto de curto prazo muito negativo é real.

P - Como a enorme população informal brasileira pode ser afetada?

RS - As pessoas que estão na informalidade sofrerão demais em termos de renda, seja porque ficarão doentes e não terão como trabalhar, seja porque a economia simplesmente pode colapsar e não vai ter ninguém na rua, nenhum cliente, nenhum negócio.

Isso tem a ver com as consequências econômicas e de saúde em outras dimensões. Para famílias que vivem de trabalho informal, a queda de demanda vai ter um impacto muito grande. Não tenha dúvidas de que a mortalidade por motivos não relacionados ao coronavírus vai aumentar por causa desses choques. Não tem muita escapatória.

Mas a dimensão do problema ainda não está clara. Além disso, houve o discurso nos Estados Unidos e no Brasil de que, em lugares quentes, a disseminação seria menor. Na verdade, os epidemiologistas e infectologistas não sabem.

P - Qual o risco de fazer avaliações que podem se provar subestimadas?

RS - Ao subestimar a seriedade da pandemia, você reduzirá os custos econômicos no curto prazo e aumentará os custos sociais, de saúde e econômicos no médio prazo. Não é à toa que grande parte dos políticos populistas, que hoje estão no poder em diferentes partes do mundo, adota discursos de minimização. Você diminui custos de implementar uma política que seria séria e desejada no curto prazo e os empurra para a frente, correndo o risco de aumentá-los de forma dramática.

Isso no médio prazo. Acho que ninguém tem uma expectativa de que isso terá um impacto permanente na economia mundial.

P - Há riscos econômicos de longo prazo?

RS - O perigo maior no período pós-pandemia tem origem mais política. A gente já estava vendo um movimento antiglobalização muito forte, em grande parte associado à nova direita populista. Não é impossível imaginar que a crise reforce um pouco esse discurso. Minha maior apreensão, em termos de impacto econômico no longo prazo, é isso se manifestar via um entrincheiramento desse discurso antiglobalização.

P - Esse é um risco grande?

RS - Difícil dizer, porque também é possível que pessoas mais centristas, mais ponderadas, que têm aceitado esse discurso, falem agora: "Acho que essa coisa de ciência é, de fato, importante". Esse desprezo pela ciência que vem sendo alimentado por governos populistas de direita pode também ser solapado um pouco e a população mais centrista [pode] se afastar disso. Mas é difícil prever.

P - Como esse segundo cenário ajudaria a economia?

RS - Esses mesmos grupos antiglobalização têm se identificado com o discurso anticientífico. Há desprezo pela evidência cientifica em geral. Não só em economia, até em astronomia e geologia, aparentemente.

Todo o discurso dos ideólogos por trás desses grupos está muito conectado. Tem uma parte da população que tem olhado para isso recentemente com um certo cinismo. Ela pensa: "Isso é bobagem, se a economia estiver indo bem, essas bobagens não importam muito". Essa parte da população pode pensar agora: "Opa, na verdade tem horas em que a ciência pode ser importante".

Ter grupos no poder que desprezam isso inteiramente, são totalmente ignorantes e refratários a evidências pode ter consequências muito graves.

Nos EUA, isso é claro. Um presidente [Trump] que uma semana atrás estava dizendo que tinham 12, 15 casos e que ia acabar e chegar em zero rápido e que, ontem [quarta, 11], teve de ir para a TV dizer que todos os voos entre EUA e Europa continental estavam suspensos.

P - Bolsonaro, que se referiu ao coronavírus como "pequena crise", também se encaixa nesse contexto?

RS - Esses governos, seja o dos EUA, seja o do Brasil, não tomaram a coisa com a gravidade que deveriam desde o começo. Por isso as pessoas estão se assustando agora. Se você está lendo o noticiário sério, cientistas e epidemiologistas estavam dizendo havia semanas que isso ia ocorrer. Mas as pessoas continuaram tocando suas vidas, e autoridades não chamaram a atenção como deveriam. A ficha está caindo agora, tarde.

Mas, há um tempo, o Ministério da Saúde leva isso muito a sério. A centralização do sistema federativo no Brasil -que é muito maior do que nos EUA- e a presença de um sistema de saúde público ajudam. Além disso, o Brasil ainda está muito atrás dos EUA em termos do processo [de contaminação]. Há o benefício de ver o que está acontecendo em outros lugares.

E acho que o próprio ministro da Economia [Paulo Guedes] deu a entender que estão pensando em cenários desastrosos, embora ainda tenham uma previsão oficial de crescimento de 2,1%, o que, agora, me parece uma fantasia.
Tendo dito isso, ainda acho que os sustos vão continuar acontecendo. Na Europa, eles estão pensando no pior cenário. O Brasil está apostando um pouco na coisa de o país ser um pouco mais quente. Se isso não ocorrer, é bastante provável que o sistema de saúde sofra uma pressão gigantesca. As pessoas têm de estar preparadas para alguns meses de situações muito extremas, de fato.

P - A situação econômica mais frágil do Brasil limita possíveis ações do governo?

RS - Idealmente, é em um momento como esse que você deve estar preparado para dar suporte a quem está sofrendo esse choque. A situação fiscal do Brasil torna isso muito mais difícil.
Uma ideia que me parece equivocada é dizer que os governos têm de tentar reativar a economia. O trabalhador não está indo para a fábrica. A peça que deveria estar indo para a montadora não está chegando da China.

Não há o que fazer, porque a economia é real. Isto não é uma crise financeira. É uma crise real. Como você vai reativar a indústria aérea se a gente não quer que as pessoas voem?

Não é sobre reestimular a economia. É sobre criar proteção e acesso a crédito em condições especiais e prazos mais longos para os setores, os indivíduos e as famílias que vão sofrer. É, na verdade, minimizar o impacto desse choque temporário. O setor privado deveria estender linhas de crédito. E fazer isso de uma forma crível para que esses setores não se aproveitem disso no futuro.

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