Retomada após a pandemia deve incluir reforma tributária sobre renda e folha de pagamento

A pandemia do novo coronavírus mudou o eixo de discussão da reforma tributária. Antes muito dirigida às mudanças na composição de impostos sobre o consumo, agora ganha espaço propostas que tratam da tributação sobre a renda.

O secretário especial da Receita Federal, José Tostes Neto, afirmou nesta segunda-feira (15) que o governo quer promover uma desoneração da folha de pagamento para estimular a recuperação de empregos após a crise, e que a redução de benefícios fiscais ou revisão de alíquotas de outros tributos podem dar suporte à investida.

A revisão dos encargos sobre a folha de pagamento das empresas viria para estimular a formalização do emprego, ressaltou ele.

Em relação à renda, Tostes pontuou que a ideia, para pessoas físicas, é que haja reformulação rumo a uma maior progressividade, com mudanças na estrutura da tabela de IR (imposto de renda) e no conjunto de deduções e abatimentos que são hoje possíveis.

Já para as pessoas jurídicas, Tostes disse que o governo mira uma revisão na forma de apuração no lucro real.

"Hoje existem conjuntos de mais de 300 adições e exclusões na apuração do lucro real que tornam esse processo bastante complexo", afirmou Tostes Neto em debate online promovido no âmbito do Encontro Nacional dos Coordenadores e Administradores Tributários Estaduais (Encat).

A formulação de alternativas também mobiliza especialistas no tema que tentam contribuir com a reforma tributária.

O CCiF (Centro de Cidadania Fiscal) elaborou uma proposta de desoneração da folha de pagamento que reduz o custo de contratação em todas as faixas de salário e coloca as contribuições praticamente no mesmo nível dos benefícios gerados.

Ela inclui a desoneração parcial do primeiro salário mínimo da renda de todos os trabalhadores, o fim da contribuição patronal sobre a parcela que excede o teto do salário de contribuição e a eliminação de contribuições não previdenciárias. O impacto total é estimado em R$ 153 bilhões (cerca de 2% do PIB).

As mudanças visam incentivar a formalização e reduzir a "pejotização" de trabalhadores.

A instituição propõe também ampliar a progressividade do IRPF (Imposto de Renda Pessoa Física) para financiar a desoneração e tratar toda a renda do trabalho de forma isonômica, com mudanças em regimes de tributação como o Simples.

O modelo permite ainda combinar essas medidas com a criação de um programa de renda básica universal.

Comandado pelo economista Bernard Appy, o CCiF foi responsável pela proposta de reforma tributária do consumo que tramita na Câmara e tem participado de debates sobre tributação de renda.

"A gente propõe eliminar a tributação da renda que resulta em contribuições maiores que os benefícios para todo mundo. Em cima disso muda-se a tabela do IRPF. Não dá para ficar com uma alíquota marginal de 27,5% já que a gente está eliminando aquele excesso de contribuições [sobre a folha] de trabalhadores de alta renda", afirma Appy. "E tem de fazer mudanças para que a renda nos regimes simplificados seja tributada como a de um trabalhador formal."

A mudança com maior impacto financeiro (R$ 75 bilhões) prevê alíquotas de 9% sobre o primeiro salário mínimo da renda de todos trabalhadores e de 30% para os valores acima disso.

Os 9% são a estimativa de quanto é necessário para financiar benefícios de risco, como auxílio-doença. Os 30% incluem mais 21% para financiamento dos benefícios programáveis (aposentadoria e pensão por morte, por exemplo).

Em relação ao financiamento, Appy diz que seria necessário rever, por exemplo, benefícios fiscais no IR de pessoas físicas e jurídicas e tributos patrimoniais. Somente as deduções do IRPF representam R$ 50 bilhões por ano.

Com impacto de mais R$ 40 bilhões por ano, a CCiF propõe também eliminar a contribuição patronal sobre a parcela que excede o teto do salário de contribuição. A medida dever vir acompanhada do aumento da alíquota máxima do IRPF, que hoje é de 27,5% e se aplica à faixa salarial acima de R$ 4.664,68.

Uma terceira proposta é eliminar contribuições não-previdenciárias sobre a folha (como Sistema S e salário-educação), com impacto estimado em R$ 38 bilhões por ano.

O CCiF calculou o custo atual das contribuições sobre a folha e os benefícios gerados, por faixa de salário. Atualmente, as contribuições variam de 34% a 38% (considerando o custo para empregados e empregadores) para quem ganha até seis salários mínimos. O valor do benefício para essas pessoas varia de 17% a 30% da renda.

As novas alíquotas efetivas de contribuição propostas pelo CCiF variam de 9% a 26% na faixa até seis mínimos.

"Como você tem benefícios não contributivos, como BPC/Loas e aposentadoria especial rural de um salário mínimo, para um trabalhador com renda abaixo de dois mínimos, o valor das contribuições é muito mais alto que o benefício recebido", afirma Appy.

Em relação às pessoas com renda acima de seis mínimos, o percentual de contribuições, atualmente, começa em quase 40% cai gradativamente para cerca de 30%. Pela proposta, a nova alíquota efetiva começaria em 26% e cairia para menos de 4% na faixa da renda mais alta utilizada no estudo (50 salários mínimos), percentuais praticamente iguais aos benefícios recebidos hoje.

Para compensar a regressividade da medida (alíquotas menores para salários maiores), haveria aumento no IR.

"Não faz sentido fazer a desoneração do salário acima do teto de contribuição e não aumentar o Imposto de Renda. Você reduziria a progressividade", afirma Appy.

Ao mesmo tempo, criar uma alíquota extra de IR sem rever a tributação da folha e regimes como o Simples criará mais incentivos à "pejotização".

Appy afirma que, nesse novo modelo, os benefícios financiados com a tributação da folha ficam ligeiramente acima das alíquotas de contribuição, principalmente para as menores remunerações.

Essa diferença seria zerada, ou seja, os percentuais seriam iguais, caso seja criada uma renda básica do idoso de um salário mínimo (benefício que não seria vinculado a essas contribuições).

A instituição também sugere, como alternativa, uma renda básica universal. Trabalhadores informais declarariam sua renda e a contribuição incidente sobre o valor declarado seria deduzida da renda básica. Quem não faz a declaração recebe o benefício integral, mas não tem direito a benefícios previdenciários.

"Você cria um incentivo para que, na prática, todo brasileiro se formalize em relação à Previdência", diz Appy.

Considerando as alíquotas de 9% até um salário mínimo e 30% a partir desse valor, seria possível pagar um benefício para pessoas com renda até R$ 1.400, no caso de um benefício máximo hipotético limitado a R$ 200 (para pessoas com renda zero).

O CCiF também calculou qual seria o percentual de contribuições que atualmente supera os benefícios, considerando não só tributos sobre a folha, mas também o IRPF.

Essa tributação é de 14% da renda para quem ganha o salário mínimo, cai para 2% na faixa próxima a dois salários e sobe para quase 20% entre os que ganham cinco mínimos, podendo superar 50% nas faixas mais altas.

Considerando as alíquotas atuais do IRPF, a proposta de desoneração da folha fará com que trabalhadores com renda de até 3,7 mínimos (R$ 3.867) tenham contribuição inferior ao percentual de benefícios em até 14% do salário na soma de IR e tributos da folha. A partir desse valor de renda, a tributação líquida de benefícios sobe até, no máximo, 25,3%.

O Ministério da Economia planeja uma desoneração temporária de tributos sobre salários com objetivo de estimular contratações após o pico do coronavírus, mas ainda não apresentou proposta, financiada por um imposto sobre transações digitais, semelhante à antiga CPMF. Appy afirma que é melhor desonerar a folha corrigindo outras distorções.

Questionado sobre as chances de a proposta do CCiF ser incorporada aos projetos de reforma tributária que tramitam no Congresso, Appy diz que essa decisão é dos parlamentares. "Nosso trabalho é fazer propostas que sejam tecnicamente consistentes. A decisão do que pode ou não ser aproveitado é política."