Apartheid tropical

Tem algo muito estranho gestando no Palácio Guanabara, sede do governo do Estado do Rio. As ideias que saem de lá não parecem exatamente lúcidas. E lucidez, todos sabemos, deveria ser uma característica imprescindível para todos os governantes e representantes do povo.

A mais recente pérola palaciana foi expelida quarta-feira (16) pelo atual governador, Wilson José Witzel. Disse ele, durante um evento em Copacabacana, que está em estudos, no âmbito do projeto Segurança Presente, fechar acessos a comunidades do estado.

Disse ele, durante um evento em Copacabacana, que está em estudos, no âmbito do projeto Segurança Presente, fechar acessos a comunidades do estado. Não, não foi erro de revisão. A frase acima foi repetida para que fique bem claro o absurdo das palavras do governador. Que, de resto, tem tornado sua gestão uma tortura diária para os moradores das comunidades de baixa renda do estado.

Resumindo: por trás da declaração de Wilson Witzel está o desejo insano, e inaceitável, de criar guetos dentro das cidades - que, por enquanto, ainda permitem o livre tráfego. Controlar a entrada e saída de cidadãos em determinadas regiões é isto: criar guetos.

Foi assim no mais famoso deles, em Varsóvia, na Polônia então ocupada pelos nazistas. A ideia de isolar os poloneses de origem judaica vinha desde o começo da ocupação do país, em 1939 - uma agressão cínica que acabou marcando o início da Segunda Guerra Mundial.

No ano seguinte, o governa- dor designado pela Alemanha para controlar a Polônia, Hans Frank, conseguiu enfim criar o gueto de Varsóvia - até hoje uma referência da maldade humada em larga escala. Data do decreto: 16 de outubro de 1940. Ou seja: fo- ram exatos 79 anos entre o início da implantação do crime nazista e o pronunciamento do Witzel sobre cercar as favelas do Rio.

Como se vê, algumas ideias estúpidas nunca morrem. Mas deveriam. No gueto de Varsóvia, o distrito reservado para o iso- lamento das famílias de judeus ocupava apenas 2,4% do território da cidade. Ainda assim, chegou a reunir 380 mil pessoas - ou cerca de 30% da população da hoje vi- brante capital polonesa. À época, entretanto, as péssimas condições com que os judeus foram tratados provocou disseminação de doenças e morte, muita morte.

O gueto de Varsóvia serviu também como uma espécie de área de transição para milhares de judeus que, a partir de 1942, começaram a ser embarcados para os campos de concentração.

Não precisamos de guetos nas comunidades pobres do Rio para provocar mais mortes do que temos registrado desde o início do ano. Os jornais registram, toda semana, dados assustadores sobre ví- timas de balas perdidas em favelas, atingindo preferencialmente estudantes e trabalhadores inocentes, a qualquer hora do dia.

A política de confronto oficial do governo só tem se mostrado inócua, alimentando apenas a indústria da guerra e a intranquilidade da população.

É verdade que o apartheid, no sentido metafórico, já existe no Brasil - e, claro, no Rio. O que Wilson Witzel propõe, no entan- to, é estabelecer uma nova política de apartheid, adaptada aos trópicos brasileiros e devidamente transmitida via internet.

A proposta hedionda do governador - ex-juiz e homem aparentemente religioso - vem a reboque de se diminuir a taxa de roubos de cargas em todo o Estado do Rio. De fato, é o tipo de crime que está em alta. Segundo o Instituro de Segurança Pública (ISP), foram 9.182 roubos desse tipo so- mente ano passado.

No entanto, em vez de usar a investigação e o combate à corrupção, o governador acredita firmemente que investir em helicóp- teros e motos de alta velocidade contra o roubo de cargas irá “praticamente zerar e reduzir muito o dinheiro que financia o tráfico”, como disse ele para jornalistas.

Questionado, Witzel respondeu que sua proposta não pretende representar qualquer “tipo de invasão da liberdade de ir e vir de nenhum cidadão”.

Difícil acreditar. O plano é implantar esse plano “em corredores das estradas e acessos onde tem entrada do roubo de cargas nas comunidades”.

Witzel não sabe o que fala. Implementar qualquer controle em comunidades só vai piorar ainda mais a mobilidade da população. Não é questão teórica, ideológica ou retórica. É prática. Vai atrapa- lhar ainda mais o dia a dia dos seus moradores. E, com muita certeza, está longe de representar o fim dos roubos de cargas. Só tende a provocar mais sofrimento numa gestão já caracterizada pela violência institucionalizada.

É por essas e por outras que vale a pena ficar de olho - e refutar veementemente - essas ideias hediondas que têm aparecido no lindo Palácio Guanabara.