Coragem de mexer em um modelo atrofiado

Por Claudio Magnavita

Ninguém duvida que o carnaval é importante para a economia do Rio. Ninguém duvida que o desfile das escolas de samba é um dos nossos principais produtos turísticos e referência mundial do Rio. Está no imaginário planetário. Nem as cópias que surgiram, como o de São Paulo e alguns na Argentina, traduzem a força da Sapucaí e do nosso povo - que nos perdoem os paulistas.

Nos últimos dois anos assistimos a um debate duro entre a Prefeitura e as escolas de samba. Ao apoiar as escolas da Intendente Magalhães, o prefeito Marcelo Crivella deixou claro que não é contra o samba ou o carnaval, mas contra um modelo que precisava ser repensado e atualizado.

A percepção das suas razões foi eclipsada por duas vertentes diferentes: o fato de ele ser bispo de uma igreja evangélica e enfrentar a oposição cerrada da Rede Globo, emissora que há décadas mantém uma relação muito íntima com os organizadores do desfile carioca.

Como bispo, é fácil a mídia grudar a ideia da sua alergia ao carnaval, apesar de a sua gestão ter realizado nos últimos três anos festas impecáveis, mérito da equipe que Crivella escolheu para comandar a Riotur, presidida pelo Marcelo Alves.

Já o contrato da Globo com a Liesa faz parte de um modelo que estagnou. Que parou no tempo e que precisa ser emergencialmente repensado. Vai muito além de uma disputa entre redes de televisão, lembrando que o prefeito é sobrinho do proprietário da rede que concorre diretamente com a Globo. Este peso vira até ônus quando ele propõe “desmamar” o carnaval das tetas das verbas públicas municipais. Existirá sempre quem atribuirá maldosamente o seu pedido de revisão do modelo a um embate entre titãs do negócio da televisão, apesar de haver alguns vídeos da prefeitura colaborando com esta tese.

O desfile das escolas de samba do Rio é apenas uma pequena parte do seu potencial. Continua com patronos que, pelas duras regras do compliance, afastam grandes patrocinadores. Este modelo de agremiações com patronos era até um “charme” no passado, quando víamos o Boni, diretor-geral da Globo, e sua amizade fraterna com banqueiros do jogo do bicho - linha tênue entre a contravenção e os socialites que perdurou até nos grandes clubes noturnos. Algo parecido com o que acontecia em Nova York entre a máfia e a elite novaiorquina.

Neste contexto, a capacidade real das escolas se profissionalizarem foi se atrofiando com o passar do tempo, e o dinheiro dado a fundo perdido pela Prefeitura e até pelo governo do estado, ou federal, através de estatais como Petrobras, só ajudaram nesta perda de musculatura. 

O próprio Sambódromo parou no tempo e espaço e sofre com o desgaste estrutural imposto de forma implacável pelo tempo.

Os camarotes viraram um negocio à parte. Espaços para a música eletrônica ocupam mais espaço que o samba. Quem apostou no samba, como o Rio Samba e Carnaval, do Mauricio Mattos, sofreu na pele esta invasão alienígena de camarotes na edição deste ano.

A iluminação do desfile está parada no tempo. Usa panelões, necessários quando as câmeras de TV eram de tubo e precisavam de luz em excesso. Falta luz cenográfica. A empresa que iluminou os shows do Rock in Rio é brasileira.

A venda de ingressos e o desconforto das arquibancadas continuam, num modelo que beira o conformismo.

O neófito carnavalesco Wilson Witzel, como governador, estreou na avenida usando o chapéu de malandro e tentando encarnar o carioca da gema. Era quase um clone do ex-prefeito Eduardo Paes, para quem ele hoje arrasta as asas. Gostou tanto da experiência que resolveu ser dono do brinquedo. “O Sambódromo é do estado”, e quis assumir a festa. Mal se lembra que o estado não teve recurso para bancar o seu camarote em 2019 e dependeu da generosidade de terceiros para ter serviços de catering nos dias da folia.

Privatizar a festa é a solução. Tivemos agora dois fins de semana de Rock in Rio com tecnologia e gestão 100% brasileira, prova viva da capacidade da iniciativa privada.

Mas qual empresário assumirá um evento recheado de ingredientes de risco? A lista é grande: Sambódromo precisando de intervenção estrutural, patronos de escolas que de última hora resolvem não rebaixar perdedores, camarotes que estão mais para festa rave e patrocinadores afugentados pelas regras do compliance e pelas regras de transmissão da Globo que prioriza os seus.

O foco midiático está todo no desfile do Grupo Especial, enquanto temos um Grupo de Acesso que poderia antecipar a vinda de turistas. Os desfiles de sexta e sábado são fantásticos e preservam a garra do DNA original.

A história vai fazer justiça ao prefeito Marcelo Crivella por ter tirado da zona de conforto um modelo vencido.

A turbinada na Intendente Magalhães permitirá um resgate na raiz do carnaval. É uma escola de talentos e com potencial de virar uma atração turística.

O debate está aberto, e a coragem do prefeito fez a ruptura que precisava. Vale ressaltar que a Prefeitura continuará investindo muito na Sapucaí. Os serviços que disponibiliza para a Liesa e para Lierj são imprescindíveis para o espetáculo e não custam barato.