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Casos de racismo no futebol caem em ano sem público nos estádios

Os registros de casos de racismo no futebol brasileiro caíram 54% em 2020, na comparação com 2019, segundo o novo Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol, do Observatório Racial do Futebol. O documento foi lançado oficialmente nesta sexta-feira (8). O levantamento do Observatório aponta 31 casos de discriminação racial em 2020. Em 2019, foram 67.

"Alguém poderia dizer, então, que o Brasil está menos racista. Existiu uma campanha que conscientizou a população? Não, foram simplesmente os jogos sem torcida. A diminuição dos números não acontece por um cenário positivo de alguma ação efetiva de combate ao racismo" afirma à reportagem Marcelo Carvalho, diretor da entidade.

Isso não quer dizer que as torcidas ou torcedores sejam em grande parte racistas, mas esses dados refletem um problema social maior, ele analisa. Neilton de Souza Ferreira Junior, pesquisador do grupo de estudos olímpicos da USP, acrescenta que o futebol tem uma estrutura, criada a partir de suas instituições, extremamente tolerante ao racismo. Ele entende que a solução não é afastar os torcedores, como sugere a pandemia, mas trazê-los para dentro da discussão.

"A solução não é criminalizar. Precisamos de cidadãos que saibam a necessidade de modificar esse produto cultural [o futebol] para que ele se torne cada vez mais humano e as relações se tornem recíprocas. A relação de consumidor e mercadoria favorece o racismo, porque temos a alienação entre o ser humano atleta e o ser humano torcedor", afirma.

Ele lembra que as torcidas são, historicamente, largadas à margem do processo de construção do futebol. E que o tratamento desumano também desumaniza aquele que torce. "Torcidas desrespeitadas e afastadas do processo de interação não podem ser consideradas a causa principal do racismo", diz.

"Precisamos pensar como radicalizar a democratização do espaço do futebol, humanizar esse grupo social e fazê-lo compreender que o atleta é tão humano quanto ele, mesmo que seja adversário no campo", completa.

Marcelo Carvalho pondera que, ao mesmo tempo que a maior parte dos casos de racismo vem das arquibancadas (51% em 2019), é também resultado de movimentos de torcedores a vanguarda das mudanças sociais no esporte. "Eles têm puxado essas pautas através dos clubes, fazendo o time dialogar", afirma ele.

Exemplos disso são grupos como a Coligay e o Orgulhe Vermelho, de Grêmio e Internacional, respectivamente, além de outros, como a Grupa, do Atlético-MG, ou o Movimento Popular Coral, do Santa Cruz, coletivos que têm se reunido com a direção de seus clubes para debater pautas de inclusão e combate ao preconceito.

O Observatório também contabilizou, em 2020, 12 casos de LGBTfobia no futebol brasileiro, 11 de machismo e 4 de xenofobia. O relatório completo poderá ser acessado gratuitamente na internet. O levantamento também analisa episódios em outros esportes e fora do país.

Questionado se os movimentos contra o racismo que marcaram o esporte mundial no último ano poderiam também ter influenciado na queda de casos, Carvalho diz não acreditar nisso
e aponta que o futebol brasileiro vive numa realidade diferente da que se situa o esporte no mundo.

"Parece que tudo o que aconteceu não aconteceu no Brasil. A gente vê os clubes fazendo ações isoladas, não algo organizado em termos de ações práticas, mesmo sendo o país com mais negros fora da África. Parece que o racismo não chegou no futebol, isso me deixa assustado. Quem comanda o futebol brasileiro não conseguiu perceber a necessidade de usar o futebol para falar sobre racismo."

Já Neilton de Souza Ferreira Junior concorda que ainda é muito cedo para saber se a queda nos registros de fato representa uma maior consciência sobre o tema, mas entende que há ao menos uma aparente mudança.

"Vimos o crescimento de manifestações antirracistas vindo da comunidade esportiva, vindo inclusive das torcidas, com atletas protagonizando situações importantes do ponto de vista simbólico. O impacto futuro disso é difícil de ver do ponto de vista imediato", opina.

Em 2020, em razão da pandemia, os estádios deixaram de receber público em meados de março. O futebol chegou a ser suspenso e foi retomado no início do segundo semestre, mas de arquibancadas vazias. Mesmo assim, olhando estritamente para os casos que aconteceram no ambiente dos estádios, aqueles nos quais o acusado de agressão é um torcedor representam quase 50% do total.

No geral, os torcedores respondem por 64% dos casos de discriminação racial. Apesar da queda nos números com a ausência de público nos estádios, houve um crescimento de episódios na internet. As ocorrências no ambiente virtual passaram de 10% em 2019 para 33% em 2020.

"E são só os casos que ganharam a mídia. Porque, se formos olhar as redes, não precisa nem de lupa, a gente vê que os casos de racismo na internet são muito mais numerosos que isso", diz Carvalho.

Junior diz ainda que há diversos caminhos para combater o racismo no esporte, como aumentar a presença de negros e negras em postos de comando do futebol -existe, por exemplo, um projeto de lei sobre isso paralisado no Congresso.

Carvalho ainda aponta que as punições nos casos de racismo ainda são brandas no Brasil e que é importante olhar além do futebol profissional, sobretudo para as categorias de base -em 2020, foram três casos em jogos de menores de 20 anos–, para debater a questão racial desde a formação dos atletas.

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