Crise entre Rússia e Otan faz potências prometerem não travar guerra nuclear

Por: Igor Gielow

Em um texto que pode ser lido como óbvio, hipócrita e necessário ao mesmo tempo, as cinco potências nucleares com assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas divulgaram um manifesto se comprometendo a não travar guerra com armas atômicas enquanto cresce a tensão entre Rússia e Otan na Europa.

"Nós declaramos que não pode haver vencedores numa guerra nuclear, que nunca deve ser iniciada", diz o texto, completando que os "enquanto existirem", as bombas "devem servir apenas a meios defensivos, de dissuasão contra agressões e prevenção da guerra".

O documento é assinado por Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França, as cinco potências com poder de voto e de veto na principal instância da ONU (Organização das Nações Unidas). Não por acaso, os países vencedores da Segunda Guerra Mundial e com capacidade nuclear adquirida ao longo da Guerra Fria.

A obviedade do texto é conhecida desde EUA e a então União Soviética começaram a empilhar bombas nos anos 1950. Uma guerra com armas termonucleares, mesmo em escala reduzida, é uma ameaça existencial à humanidade –em versão global, inviabilizaria a civilização como a conhecemos.

Logo, nada mais natural do que reafirmar que a guerra é ilógica. Hipócrita, apontarão críticos, porque mantém o status quo e o prestígio das grandes potências: há outros quatro países com a bomba, Israel, Coreia do Norte, Índia e Paquistão, e significativamente nenhum deles é signatário do TNP (Tratado de Não-Proliferação Nuclear).

O texto de 1968 entronizava os cinco membros do Conselho de Segurança como Estados nucleares por terem explodido suas ogivas até 1967. Eles são parte do TNP em condições únicas, enquanto os outros 186 países aderentes teoricamente renunciam à tecnologia mais destrutiva já criada.

Ao mesmo tempo, o texto emerge em um momento em que se fala abertamente na Europa do risco de uma confrontação entre Rússia e forças da Otan (aliança militar liderada pelos EUA) devido ao impasse nas fronteiras da Ucrânia.

O governo de Vladimir Putin concentrou mais de 100 mil homens na região para tentar forçar uma solução permanente que impeça a adesão do país vizinho à Otan, ameaçando sua posição geopolítica.

Como já havia anexado a Crimeia e fomentado a guerra civil no leste ucraniano com esse fim em 2014, após o governo pró-Moscou ser derrubado em Kiev, os EUA acusaram o Kremlin de preparar uma invasão.

A tensão se arrasta desde novembro, e as conversas para discutir os termos de um ultimato de Putin, recheado de exigências inexequíveis para o Ocidente, devem começar nos próximos dias. O russo já falou duas vezes com o americano Joe Biden sobre a questão.

Entre as trocas de acusação, há o temor russo de que sejam instaladas armas nucleares de alcance intermediário, que haviam sido banidas na Europa em um tratado rasgado pelos EUA em 2019, perto de seu território. E a ameaça do Kremlin de fazer o mesmo.

Com isso, o manifesto ganha urgência. Ele deveria ser lido na abertura da décima conferência de revisão do TNP, que iria começar nesta terça (4) em Nova York, mas que foi adiada provavelmente para agosto devido ao alastramento da variante ômicron do novo coronavírus.

No texto, as potências reafirmam seu comprometimento com o objetivo central do TNP, que é reduzir os riscos de proliferação de armas atômicas pelo mundo. Mas o foco na guerra em si chama a atenção, por trazer materialidade a um fantasma que andava esquecido após o fim da União Soviética, há 30 anos.

"É um progresso, ainda que apenas declaratório. Advoga a finalidade defensiva, o que é positivo, mas diz que elas desempenharão esse papel enquanto existirem. É sinal de que não pretendem se desfazerem delas", afirmou o embaixador brasileiro Sérgio Duarte, ex-alto representante da ONU para Assuntos de Desarmamento.

Presidente da Pugwash, entidade ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 1995 por seu trabalho pela não-proliferação, Duarte diz que as promessas são "muito aquém" das expectativas dos países que se comprometeram a não ter armas nucleares pelo TNP.

Há novas questões colocadas. A China é uma potência com novas capacidades para o emprego de suas armas, como mísseis hipersônicos e o fato de operar a chamada tríada nuclear: pode jogar suas bombas a partir de silos, submarinos e bombardeiros, ampliando as possibilidades de retaliação em caso de guerra.

O aumento dessa musculatura ainda não se deu em termos de estoque de armas, embora os EUA falem em um plano chinês não confirmado para triplicar o arsenal nesta década. Há hoje, segundo a Federação dos Cientistas Americanos, uma das balizas do setor, 320 ogivas chinesas –nenhuma para pronto uso.

Já russos têm 1.600 bombas estratégicas (para obliteração de grandes alvos militares ou cidades) para pronto uso, mais 2.897 em reserva. Americanos, 1.650 estratégicas e 100 táticas (para ações pontuais) prontas, mais 1.950 em reserva.

Franceses operam 280 armas estratégicas prontas para emprego e estocam 10; já os britânicos têm à mão 120 de suas 225 bombas.

Paquistaneses estocam 165 ogivas e seus rivais indianos, 160. Israel, que é ambíguo sobre seu conhecido arsenal, tem segundo a federação 90 ogivas e a Coreia do Norte, talvez metade disso.

Há também um movimento estratégico de aproximação entre Moscou e Pequim em curso, apesar de desconfianças históricas, impulsionado pela Guerra Fria 2.0 tocada por Washington contra os chineses. O líder Xi Jinping já falou em defesa conjunta dos dois países contra o Ocidente.