Por:

EUA completam 1 mês sustentando que invasão russa à Ucrânia é iminente

Por: Guilherme Botacini

Em uma de suas fábulas, Esopo conta a história de um jovem pastor de ovelhas que, entediado com a monotonia de cuidar do rebanho, distraía-se inventando histórias sobre ataques de lobos. A brincadeira funcionou uma, duas, três vezes, nas quais os camponeses corriam em auxílio do pastor que os recebia às gargalhadas.

A mentira perdeu a graça no dia em que se tornou verdade. Quando um temido lobo feroz de fato atacou as ovelhas, os pedidos de socorro do pastorzinho foram recebidos com incredulidade -e o predador encheu a pança.

Fábulas e morais à parte, os reiterados alertas dos Estados Unidos contra uma suposta invasão russa na Ucrânia soam aos ouvidos mais críticos como alarmistas. Invasão "iminente" e "a qualquer momento" são cenários desenhados pela comunicação oficial da Casa Branca, há um mês, para a crise russo-ucraniana. A fervura da crise aumenta e diminui, mas o governo americano apresenta poucas evidências da iminência de um ataque russo.

A insistência na estratégia é criticada mesmo por aliados e coloca Joe Biden no papel de ter de justificar a urgência, enquanto o presidente da Rússia, Vladimir Putin, mantém, sem pressa, movimentos de tropas que, na teoria e na prática, não cruzam linhas vermelhas.

Em meados de novembro, quando as ações militares começaram a chamar a atenção do Ocidente, o que estava em jogo nem era a Ucrânia, mas a crise de refugiados na fronteira entre a aliada russa Belarus e a Polônia, membro da Otan (aliança militar ocidental).

Em dezembro, os EUA se ocuparam mais em externar preocupações e possíveis sanções aos russos. Mesmo no começo de janeiro, o discurso tratava de desdobramentos apenas "possíveis". Jake Sullivan, assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, disse no dia 13 do mês passado que não havia ilusões no governo americano sobre quais seriam "as perspectivas de um potencial conflito e uma potencial escalada militar da Rússia". Ele também evitou falar em "probabilidades".

O discurso mudou cinco dias depois, quando a porta-voz de Biden, Jen Psaki, disse em entrevista coletiva: "Sejamos claros: nosso entendimento é de que essa situação é extremamente perigosa. Nós estamos agora em um estágio em que a Rússia poderia, a qualquer momento, lançar um ataque à Ucrânia."

A partir de então, foram ao menos outras 15 comunicações oficiais em que o cenário previsto pelos americanos era de invasão "a qualquer momento" -incluindo duas datas cravadas, 16 e 20 de fevereiro- ou "iminente", palavra usada no dia 25 de janeiro por Psaki. Questionada sobre eventuais mudanças de entendimento, a porta-voz foi enfática: "Bem, iminente tem um significado bem intenso, não?".

Em que pesem os atritos dos últimos dias no território ucraniano ocupado por rebeldes pró-Kremlin -relativamente comuns desde o cessar-fogo de 2014, mas agora em um "timing" muito mais delicado- a insistência na versão de invasão russa iminente por tanto tempo começa a se desgastar e gerar desconfianças sobre a motivação real dos EUA na crise.

No começo de fevereiro, por exemplo, quando questionado se havia provas de um suposto vídeo falso sendo produzido por Putin para justificar a invasão, o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, respondeu a um repórter que, se ele duvidava do governo americano, que buscasse "consolo nas informações que os russos estão divulgando".

Nesta quinta-feira (17), o secretário de Estado americano, Antony Blinken, foi ao Conselho de Segurança da ONU para reiterar as previsões do ataque a qualquer momento e explicitar a posição americana frente às críticas a eventuais exageros. "Se a Rússia não invadir a Ucrânia, estaremos aliviados que ela mudou sua rota e provou que nossas previsões estavam erradas", afirmou o líder da diplomacia dos EUA. "Esse seria um resultado muito melhor do que a rota em que estamos agora. E nós aceitaremos de bom grado qualquer crítica direcionada a nós."

Mas a persistência do discurso e a recusa em apresentar evidências também faz emergir um passado recente de desconfiança nas acusações americanas. Há 20 anos, o país acusou o regime de Saddam Hussein de esconder armas de destruição em massa –principal argumento, nunca comprovado, para a invasão do Iraque em 2003.

Outra marca do fracasso de órgãos de inteligência dos EUA que respinga na confiabilidade das palavras americanas por parte de aliados e rivais é mais recente e já está na conta de Biden: a retirada caótica de tropas do Afeganistão, após 20 anos de ocupação, diante da rápida e inesperada tomada de Cabul pelo Talibã.

O que se sabe publicamente das intenções de Putin é que o líder russo deve continuar a usar a movimentação de tropas para tentar manter sob sua influência e longe da Otan os países da antiga União Soviética que viveram revoluções –golpes, na visão de Moscou– desde o começo do século, passando pela derrubada do governo aliado dos russos na Ucrânia em 2014.

"A Rússia não quer os custos de um conflito aberto, nem os ocidentais. Mas Putin não recua de seus interesses quando retira tropas", afirma Lucas Leite, professor de relações internacionais da Faap e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA. "Indiretamente as tropas permanecem, o controle a leste da Ucrânia ainda está com grupos ligados à Rússia, e seu recuo provavelmente só ocorre com recuo ocidental também. Quem sai fortalecido é o Putin."

Na urgência americana, há também um componente doméstico. Fragilizado em casa, Biden pinta um inimigo externo pronto para violar valores caros aos EUA e seus aliados e tenta mostrar firmeza à frente das eleições de meio de mandato, que ocorrem em novembro e podem virar de vez a maré já pouco favorável ao democrata.

Um ano depois de assumir a Presidência, Biden caiu dos iniciais 57% de aprovação entre os americanos -índice que, a essa altura do mandato, é superior apenas ao de seu antecessor republicano, o ex-presidente Donald Trump. Com poucos consensos mesmo dentro do Partido Democrata, o país registra o maior índice de inflação em 40 anos (7,5% no começo de fevereiro), e uma pandemia que ainda não foi embora.

"Uma parte que votou no Biden está se sentindo muito frustrada. A economia melhora, mas ela não sente isso no dia a dia. A camada média da população, mais afetada na crise de 2008, continua em situação precária, os benefícios demoram a vir", analisa Cristina Pecequilo, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo. "É um país muito convulsionado internamente. Tentar externalizar isso tem uma eficácia muito baixa."

Sob a perspectiva diplomática, a estratégia do governo americano ainda pode se mostrar equivocada ao passar sinais trocados. "Biden insistir na 'invasão a qualquer momento' pode ser ruim para as negociações, porque demonstra que, enquanto nos bastidores há a tentativa de construção de pontes, ele continua usando essa narrativa para se reconstruir, pautar sua imagem e a de um país que vai às últimas consequências para defender liberdade e democracia", afirma Leite.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.