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Refugiados do leste da Ucrânia sofrem sem destino certo na Rússia

Por: Igor Gielow 

Em seus 72 anos de vida, Ala teve de deixar sua Lugansk natal três vezes. Duas foram entre 2014 e 2015, quando a guerra civil arrasou o Donbass, a região leste da Ucrânia hoje no centro do palco das tensões internacionais.

"Desta vez foi diferente, não sei para onde estou indo", afirmou ela em um centro de triagem de refugiados no porto russo de Taganrog, à beira do mar de Azov. A cidade virou a principal referência para a redistribuição de civis evacuados a pedido dos governos das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk.

Ora reconhecidas independentes por Vladimir Putin, as entidades iniciaram a evacuação de forma absolutamente suspeita na sexta (18), com um vídeo do líder de Donetsk que havia sido gravado, segundo análise de metadados, dois dias antes.

O ar algo farsesco segue no ginásio esportivo da escola número 13 da cidade de 250 mil habitantes, que fica a 55 km da fronteira da área rebelde de Donetsk e a 75 km da principal cidade da região de Rostov, Rostov-do-Don. Um fotógrafo profissional registrada com afinco cada um dos refugiados que chegavam ao local, rosnando para a reportagem.

A reportagem não pôde entrar no ginásio com vaga para centenas de refugiados. Nos dois dias anteriores, contudo, ele foi apresentado a jornalistas russos. Um monitor na parede permitia ver partes do prédio, mas a imagem das camas de campanha estava congelada em uma fotografia.

Outros relatos, colhidos por agências de notícias em pontos diversos do território de Rostov, apontam para o mesmo roteiro: o anúncio pegou muitos de surpresa, levantando a dúvida se a decisão não foi desenhada para engrossar o caldo narrativo de Putin de que há um "genocídio" contra a população russófona do Donbass.

Aqui entra o drama contado por Ala e sua filha Karina, 42, e o neto Mikhail, 16. Eles preferiram não revelar o sobrenome, vivendo do trabalho em um "produkti", as tradicionais lojas de mantimentos russas. Segundo a avó, as explosões em Lugansk começaram a "tremer a casa à noite" desde a semana passada.

"Meu neto sofre de síndrome do pânico, teve ataques na escola, por causa do medo", disse. "Entramos em ônibus do governo, que nos deu mil rublos (R$ 63) para irmos embora. Na fronteira, trocamos para microônibus apertados, havia quatro pessoas para cada lugar", disse.

Ela não usava máscara, assim como o neto, mas diferentemente de sua filha, que estava regularizando seu cadastro para ter acesso aos 10 mil rublos (R$ 630) prometidos por Putin a cada um dos refugiados. É dinheiro para uma semana em Rostov-do-Don.

O novo coronavírus é um problema adicional. Autoridades russas dizem que foram isolados vários casos positivos entre os cerca de 80 mil refugiados que já chegaram –a evacuação sugerida e a mobilização de homens subsequente feita pelos governos rebeldes visa tirar até 800 mil pessoas do Donbass. Há 4 milhões de pessoas na região.

Ala e sua família, contudo, não entraram no ginásio para abrigo e redistribuição. Ela tem uma prima que mora em Rostov-do-Don, e o marido dela acabara de chegar para levá-la para casa.

"Não sei quanto tempo vai durar. Mas eu sou grata aos russos, sem ajuda deles não teria o que comer, já que o governo ucraniano cortou minha aposentadoria desde 2015", disse ela, que espera não haver guerra aberta.

Chorando, ela diz estar cansada da rotina, mas deseja voltar logo para casa. Caminho inverso faz Katia, 35, analista de sistemas de Donetsk.

Ela disse que não veio na primeira leva de refugiados e descartou ajuda oficial, vindo por conta usando táxi até a fronteira e depois dela também na segunda.

"Eu queria ficar, disse que aguentaria morar no porão, mas minha irmã me pediu demais. Meus irmãos ficaram com meu pai", disse. Ela agora pretende arrumar emprego na capital regional de 1,1 milhão de habitantes, onde mora sua irmã.

Oito regiões russas decretaram emergência para ter acesso a créditos especiais do governo para receber refugiados. Além de Taganrog, há centros de redistribuição de pessoas em outros pontos menores na fronteira. Em muitos casos, as pessoas entravam em trens sem saber exatamente onde seriam reassentadas.

O canal de TV estatal RT lançou uma campanha para que russos recebam temporariamente refugiados em suas casas. Em Rostov-do-Don, a propaganda oficial está sendo feita no elefante branco remanescente da Copa de 2018, a Arena Rostov.

Os LEDs de seu exterior divulgam, desde o discurso do reconhecimento das áreas rebeldes que foi bem visto por Katia, mensagens motivacionais como "Estamos juntos". O estádio em si, que recebeu a fraca estreia do Brasil naquele torneio, empate em 1 a 1 com a Suíça, raramente enche para receber o time local, mas até a pandemia se sustentava com grandes shows.

A capital regional ainda não sentiu o impacto da crise, que mal é comentada em cafés e restaurantes. Mas sua Universidade Técnica resolveu separar 750 quartos de seus dormitórios para receber eventuais famílias que cheguem até ali.

A calmaria aparente se estende por toda o longo e plano caminho até a fronteira, margeando o rio Don cuja bacia dá nome ao Donbass em russo e o mar de Azov, primeira porção do turbulento mar Negro que banha toda a área em conflito.

Nesta segunda, na região em torno de Taganrog, não havia movimentação de veículos militares pela região. No horizonte, dois helicópteros de ataque Mi-24, talvez sua versão modificada Mi-35, deram as caras no começo da tarde, mas foi só.

A guerra civil no Donbass já matou mais de 14 mil pessoas, e só na Ucrânia sob controle ucraniano há cerca de 1,5 milhão de pessoas deslocadas internamente. Refugiados em outro país são um número incerto. Assim, as histórias da família de Ala, Katia e outros se encaixam tanto na argumentação de Putin quanto na do Ocidente sobre a crise, só nunca na deles mesmos.

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