Igreja Ortodoxa russa critica papa Francisco, e patriarca Cirilo entra na mira da UE

O conflito que se desenrola no Leste Europeu deu sinais nesta quarta-feira (4) de que pode contribuir para um desgaste ainda maior na relação entre a Igreja Ortodoxa Russa e a Igreja Católica Romana, com a diplomacia religiosa trocando farpas públicas.

O Departamento de Relações Exteriores da instituição russa acusou o papa Francisco, líder católico, de ter "usado o tom errado" ao despender comentários sobre a conversa de aproximadamente 40 minutos que teve com o patriarca Cirilo, líder ortodoxo, em março.

O pontífice havia relatado, em entrevista a um canal italiano, que Cirilo apresentou uma lista de justificativas para a Guerra da Ucrânia e chegou a afirmar que o russo não deveria se tornar um "coroinha de Putin". Entre outras coisas, o papa alega ter pedido a Cirilo para que abandonasse a linguagem da política e priorizasse a de Deus.

A nota da Igreja Ortodoxa descreve a postura como lamentável e diz que "é improvável que as falas contribuam para o estabelecimento de um diálogo construtivo entre as Igrejas Católica Romana e Ortodoxa Russa, especialmente necessário no momento atual."

O texto diz ainda que Cirilo, aliado de Putin, teria apresentado duas razões que sustentariam a invasão da Ucrânia. A primeira seria o cenário em Kiev em 2014, quando a insatisfação social levou à queda do líder pró-Moscou Víktor Ianukovitch –episódio que chama de golpe.Já a segunda seria a promessa quebrada da Otan (aliança militar ocidental) de não avançar para o leste. "O patriarca Cirilo lembrou o papa que, no final do período soviético, a Rússia recebeu garantias de que a Otan não se expandiria uma única polegada para o leste", diz.

"No entanto, essas promessas não foram cumpridas", segue o texto. "Se a Otan tivesse acolhido a Ucrânia como membro, o tempo que levaria para um foguete chegar a Moscou seria de alguns minutos, e a Rússia não pode permitir isso."

A declaração, em partes, dialoga com comentários de Francisco. Ao jornal italiano Corriere della Sera, ao comentar as raízes que encontra para o comportamento de Putin, disse: "talvez os latidos da Otan na porta da Rússia tenham o obrigado a desencadear a guerra".

Cirilo, também nesta quarta –70º dia de guerra–, entrou na mira da Comissão Europeia, o braço executivo da UE, que propôs congelar seus bens como parte do sexto pacote de sanções que deve ser aplicado contra Moscou junto com um embargo ao petróleo.

Diplomatas e documentos acessados por veículos como The New York Times, Reuters e Politico mostram que Cirilo foi descrito como um dos mais proeminentes apoiadores do conflito.

"Ele é, assim, responsável por apoiar ou implementar ações e políticas que prejudicam e ameacem a integridade territorial, a soberania e a independência da Ucrânia", diz trecho do documento sobre o assunto.

Um porta-voz sênior da Igreja Ortodoxa criticou o bloco europeu por pensar que as sanções terão algum efeito, comparando-as às décadas de repressão que a instituição sofreu sob o domínio soviético. "Tentar intimidar nossa igreja colocando o clero em algum tipo de lista só é possível para alguém que não esteja familiarizado com a história", escreveu Vladimir Legoida em um aplicativo de mensagens.

Como Putin, Cirilo acredita que russos e ucranianos são um só povo. Em meio a falas de teor ultranacionalista, já chegou a dizer que a população estava pronta para defender a pátria. "Fomos criados ao longo de nossa história para amar nossa pátria. E estaremos prontos para protegê-la, pois apenas os russos podem defender seu país."

O patriarca é de São Petersburgo, conhecida por Leningrado nos tempos de União Soviética. Com respaldo do autocrata russo, advoga pela moralização da sociedade, numa campanha a favor da educação cristã nas escolas e contra o aborto e a diversidade sexual.

Outro desdobramento no campo religioso também marcou esta quarta, quando a Federação das Comunidades Judaicas da Rússia reagiu aos recentes comentários do chanceler russo, Serguei Lavrov, que alegaram que Adolf Hitler "tinha sangue judeu".

O grupo russo, segundo a agência de notícias Tass, pediu que nenhum dos lados da guerra evoque questões ligadas a nacionalidades, que podem atuar como catalisadores do conflito. A federação pede ainda que não sejam feitas menções à história da Segunda Guerra Mundial, "que deve ser tratada com a devida relevância, pois os eventos ainda estão reverberando e continuam uma ferida aberta".