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Putin abre o jogo e defende mudança para tentar ficar no poder até 2036

Por Igor Gielow/ Folhapress

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, completou o processo para viabilizar sua permanência no poder após 2024, quando acabará o quarto mandato à frente do Kremlin.

Em um elaborado teatro, o russo apoiou a proposta feita pelo partido que dá sustentação ao governo, o Rússia Unida, de zerar a contagem de mandatos presidenciais na reforma constitucional que a Duma (Câmara baixa do Parlamento) votou em segundo turno nesta terça (10).

Com isso, Putin, 67 anos e 20 de governo na prática, estaria liberado para disputar novamente a Presidência em 2024 e, caso eleito para um novo mandato de seis anos, em 2030. Se tiver saúde e apoio popular para tanto, o líder só sairá do governo no começo de 2036, quando terá 83 anos.

"Em princípio, essa opção seria possível, mas com uma condição: de que a Corte Constitucional dê um veredito de que essa emenda não contradiz a Constituição", disse, em discurso no Parlamento que foi transmitido pela TV.

A presença de Putin na Duma, algo raro, já indicava que o jogo estava jogado. Mais cedo, a deputada Valentina Terechkova, famosa por ter sido a primeira mulher a voar no espaço, havia sido escolhida para apresentar uma proposta dupla: o fim do limite à reeleição ou, caso isso não fosse possível, a ideia de zerar tudo com a reforma constitucional que havia sido apresentada por Putin em janeiro.

Isso permitiu ao líder russo aplicar o verniz legalista à discussão. Afirmou no discurso ser contra a ideia de reeleição ilimitada, como já havia dito em diversas ocasiões anteriores, nas quais disse ter ojeriza à manutenção eterna no poder ao estilo dos líderes soviéticos.

Neste ponto, voltou atrás, com o que opositores apontarão como um toque nada sutil de cinismo. "Eu não vou esconder que estava errado. Foi um pronunciamento incorreto porque não havia eleições na União Soviética", disse, com aparente desassombro.

Na prática, a permanência no poder foi exatamente o que ele visou garantir. Na semana passada, o presidente já havia dito em entrevista que "adorava o trabalho", e no discurso desta terça afirmou que a possibilidade de sua candidatura numa eleição "aberta e concorrida" seria útil para a estabilidade da Rússia. "Já tivemos revoluções suficientes", afirmou.

Logo após a fala, o pacote de emendas à Constituição foi aprovado pela Duma, de onde segue para duas votações no Conselho da Federação, equivalente ao Senado, meras formalidades. Tudo isso terá de ser aprovado em um referendo marcado para 22 de abril. Putin também descartou antecipar as eleições para a Duma previstas para setembro de 2021.

A manobra putinista começou em 15 de janeiro, quando ele apresentou de forma surpreendente a ideia de mudar a Constituição e reformou o governo, retirando o antigo aliado Dmitri Medvedev do posto de premiê. Ela já sugeria formas de ele ficar no poder: reforçar o chamado Conselho de Estado, uma entidade hoje sem poderes executivos, e dar mais poderes ao primeiro-ministro e ao Parlamento.

As especulações começaram. A teoria mais aceita era a de que Putin buscaria uma união com a vizinha Belarus para transformar-se numa espécie de superpresidente, mas o líder local, Aleksandr Lukachenko, resistiu à ideia e a denunciou abertamente. Desde janeiro, Moscou fechou as torneiras do petróleo subsidiado ao aliado rebelde.

Já a opção parlamentarista foi descartada por Putin em diversas manifestações desde então. Leitor ávido da história russa, ele segue os conselhos do famoso premiê czarista Piotr Stolipin, para quem o maior país do mundo só seria funcional com um autocrata forte.

Agora, o cenário se aclara. Há, naturalmente, um problema à frente para Putin: fazer aprovar no plebiscito as mudanças. Críticos ocidentais costumam apontar fraudes como o principal motivo de o presidente estar no poder, mas isso não corresponde à realidade -o que não quer dizer que irregularidades não ocorram.

Putin logrou, com seu sucesso econômico relativo e com a efetiva melhoria da vida dos russos, ossificar as estruturas políticas do país. Virou um nome de comando por inércia e falta de viabilidade eleitoral da oposição, que obteve algumas vitórias simbólicas de todo modo.

Mas não é imune: enfrentou graves protestos em 2012 e em 2017, com a mobilização via rede social de milhares de jovens que reverberaram por 2018 e 2019.

É incerto se a tentativa de abrir o caminho para eternizar-se no poder irá despertar grande reação nas ruas. Putin tem, segundo as pesquisas mais recentes, de 65% a 70% de aprovação. Já teve perto 90%, no auge de sua popularidade após a anexação da Crimeia em 2014, mas o índice ainda é confortável.

O Kremlin é extremamente sensível a variações no índice, que sofreu baixas com a impopularidade da reforma da Previdência local de 2018.

As dificuldades que podem vir da guerra pelo preço do petróleo com a Arábia Saudita, somada à epidemia do novo coronavírus, sugerem um debate complexo para o plebiscito -mesmo sua realização com a sugestão de que grandes cidades russas possam entrar em quarentena é duvidosa.

Já havia sinais de alerta em sondagem feita em janeiro pelo centro independente Levada, que mostrou 27% dos russos desejando Putin no poder após o fim do atual mandato, ante 32% que o querem fora dele. Analistas veem nisso um caldo fértil para protestos.

Líder mais longevo do país desde o ditador soviético Josef Stálin, Putin é visto como um czar do século 21. Chegou ao poder em 9 de agosto de 1999, quando tornou-se primeiro-ministro do declinante governo de Boris Ieltsin. Virou presidente na virada do ano 2000, quando o titular renunciou, sendo eleito em março daquele ano para seu primeiro mandato.

Após anos de crise aguda, o então jovem Putin trouxe estabilidade inaudita desde o fim da União Soviética em 1991. Apoiado em preços favoráveis do petróleo e do gás, pilares da exportação russa, reelegeu-se com facilidade em 2004.

Em 2008, para evitar justamente as acusações de apego ao poder nominal, elegeu um poste, Medvedev. Para garantir que tudo ficasse como estava, sentou-se na cadeira de primeiro-ministro até 2012, não sem antes operar uma mudança constitucional para estender o mandato presidencial de quatro para seis anos.

Elegeu-se novamente naquele ano, quando enfrentou seus primeiros grandes protestos, vindos de uma classe média emergente insatisfeita com o rumo da economia e da política. Em 2014, sob ataque de sanções ocidentais por ter anexado a Crimeia, fortaleceu a imagem de defensor da "Fortaleza Rússia" e adotou uma política econômica austera.

Sobreviveu bem ao processo, apesar das dificuldades e de novas manifestações, ainda maiores que as originais, em 2017. No ano seguinte, reelegeu-se com margem recorde e foi anfitrião da bem-sucedida Copa do Mundo.

Preside a volta da Rússia ao cenário como potência, ainda que com sérias limitações econômicas, baseado numa política de se aproveitar de brechas estratégicas -vide a intervenção que salvou a ditadura amiga de Bashar al-Assad na Síria, ainda que tendo arriscado uma guerra com a Turquia. Reformou a partir de 2008 suas Forças Armadas, hoje muito mais capazes e melhor equipadas.

Mas há consenso de que, sem a recuperação da renda e a melhoria econômica, Putin terá dificuldades para manter seu teatro político.

O país saiu da recessão de 2015-16 enfraquecido, e agora está no meio da disputa do petróleo. Seu Produto Interno Bruto só deveria crescer 1,6% neste ano, e isso foi antes do coronavírus, o que pode dar um caráter de referendo sobre toda a era Putin ao voto de abril.

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