Putin tenta estimular vacinação, mas faz segredo sobre dose que vai receber

Igor Gielow (Folhapress)

Em um país com taxas próximas de 60% de rejeição ao uso de suas vacinas contra Covid-19, o presidente deveria ser o primeiro a receber a agulhada no braço como forma de reforçar a confiança pública nos imunizantes. Certo? Na Rússia de Vladimir Putin, não é bem assim. O chefe de Estado anunciou que receberá nesta terça (23) a primeira dose de uma das três vacinas produzidas em seu país, mas não disse qual será e nem vai fazê-lo de forma pública. "Sobre ser vacinado na frente de câmeras, ele não gosta", resumiu o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, segundo a agência de notícias Tass. A explicação sobre o mistério acerca de qual vacina seria aplicada parece mais razoável: Peskov afirma que a ideia é mostrar que qualquer uma é segura.

Putin muito provavelmente irá receber uma dose da Sputnik V, o imunizante que é propagandeado como o primeiro com autorização para uso emergencial no mundo –apesar de que, na realidade, apenas foram iniciados os testes da fase 3, a final. Outras duas vacinas estão disponíveis, mas não atingiram ainda o público, a EpiVacCorona e a CoviVac. Pouco se sabe sobre elas, enquanto a Sputnik V já teve seus estudos preliminares da fase 3 publicados na prestigiosa revista científica britânica The Lancet –com eficácia de 91,6% contra a Covid-19. O mistério é algo ao gosto de Putin, que mal deixou sua residência nos arredores de Moscou durante todo o ano da pandemia, segundo relatos por medo de contaminação. Mas não parece ser exatamente uma tática motivadora.

A resistência a tomar a Sputnik na Rússia foi medida em 58% em dezembro pelo Centro Levada, instituto independente de opinião pública. Liubov, uma hematologista de 42 que atende no hospital de referência de Covid-19, em Moscou, é um exemplo disso. Ela pediu para não ter o sobrenome revelado, já que a direção do Kommunarka, o hospital em questão, fez uma pequena caça às bruxas entre os médicos que não receberam o imunizante. "Eu simplesmente acho que é preciso esperar alguns meses para saber se ele é seguro mesmo", disse Liubov. Questionada se ela não se convencia pela publicação de dados sobre segurança e eficácia da Sputnik V na The Lancet, ela disse que "não sabia que números foram entregues para os ingleses".

O Fundo Direto de Investimento Russo, que bancou a criação e é o distribuidor mundial da vacina, contesta essas colocações. Afirma que a vacina é totalmente segura, como as fase 1, 2 e 3 demonstraram. O marido de Liubov, Pavel, também discorda da mulher. Diplomata hoje no ramo de análise militar, ele afirma que "por pouco a divergência não deu em divórcio", brincando. Ele tomou as duas doses da Sputnik V, e teve apenas um pouco de febre na primeira inoculação.

A atitude russa diante da doença é também ambígua. No domingo (21), ao desembarcar em Pequim, o chanceler Serguei Lavrov ganhou de presente pelos seus 71 anos uma máscara de repórteres de seu país. Nela estava escrito, sem as vogais e em inglês, FKGN QRNTN, um modo pouco polido de dizer "maldita quarentena".

Debates à parte, o fato é que a Rússia tem um programa letárgico de vacinação. Com o quarto maior número de casos no mundo (4,2 milhões de infecções), o país só vacinou 3,9% da população com pelo menos uma dose da Sputnik V, e 1,9%, com as duas. Após um repique forte no fim do ano passado, contudo, as curvas russas baixaram. Nesta terça houve 8.457 novos casos e 427 mortes –a letalidade no país é de 656 por milhão de habitantes, metade da brasileira.

Apesar das dúvidas em casa, a Sputnik V, cujo nome homenageia o primeiro satélite do mundo, cujo lançamento pela União Soviética em 1957 foi um feito técnico e de propaganda, segue uma polêmica e bem sucedida carreira internacional. É peça central de uma ofensiva de "soft power" de Putin, sob pressão constante do Ocidente, em especial após a prisão do líder opositor Alexei Navalni. Rússia, China e Índia lideram tal geopolítica da vacina, enquanto países ricos têm focado mais na imunização interna.

Nesta terça, o Vietnã tornou-se o 56º país a aprovar o uso da vacina, colocando-a atrás no ranking mundial apenas do imunizante da Oxford/AstraZeneca (86 países) e do fármaco da Pfizer/BioNTech (72 países). A Coronavac, chinesa e que será feita no Instituto Butantan, está autorizada em 9. Ambas as vacinas ocidentais são prioritárias no esquema de distribuição subsidiada da Organização Mundial da Saúde, o Covax. A Rússia pediu a inclusão da Sputnik V no esquema nesta terça.

O problema da Sputnik é de produção. Há pouco mais de 700 milhões de doses encomendadas mundo afora, mas as autorizações até aqui abrem mercados com 1,5 bilhão de pessoas.
Na última semana, a Rússia fechou o acordo com três fabricantes indianos para produção local, garantindo doses para 326 milhões de pessoas até o fim do ano. No Brasil, um acordo com a União Química para fabricação no Distrito Federal de pelo menos 8 milhões de doses ao mês está emperrado. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) afirma que os russos não forneceram todos os documentos necessários para a aprovação emergencial do imunizante, alvo de anúncio de compras por alguns estados e de grande pressão por parte de partidos do centrão.

Até o começo do ano, havia disputa de versões, com Moscou afirmando que tudo estava entregue. O governo brasileiro diz ter encomendado 10 milhões de doses, mesmo sem a aprovação. A Folha questionou o fundo e a União Química nesta terça, mas não obteve resposta. A polêmica é ainda maior na Europa. A Anvisa do bloco europeu, a EMA, está analisando um pedido de uso emergencial da vacina no continente, que sofre com gargalos de produção e interrupções na aplicação do fármaco de Oxford/AstraZeneca. O fundo russo afirma, embora esses dados não sejam revisados, que a vacina é eficaz contra variantes novas do Sars-CoV-2, como as que têm gerado alta de casos em países europeus.
Os governos da Alemanha e da Itália já disseram ter interesse em comprar e produzir a Sputnik V assim que houver uma autorização, mas a vacina foi criticada por autoridades sanitárias europeias diversas vezes.

A Rússia as acusa de preconceito, e aponta uma campanha de farmacêuticas e governos ocidentais contra seu produto. Nesta terça, o secretário para Assuntos Europeus da França, Clément Beaune, foi em outra direção e disse à rádio France Info que seu país poderá aplicar a Sputnik V já em junho. A disputa levou ao que pode ser a primeira queda de governo devido a uma vacina, na Eslováquia, único país da União Europeia, ao lado da Hungria, a já ter aprovado a Sputnik V. Lá, o premiê Igor Matovic encomendou 2 milhões de doses do imunizante e já recebeu 200 mil.

Membros de sua coalizão discordam a da aplicação sem a aprovação da EMA, e o ministro da Saúde pediu demissão. Matovic colocou o cargo à disposição no fim de semana, mas diz que "não pode deixar de salvar vidas" no país, que tem a maior taxa de mortes diárias per capita da Europa.