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Gastronomia e a Economia Criativa Fluminense

Por Reinaldo Paes Barreto*

Não há uma definição consagrada para EC, até porque é um conceito em evolução. Mas há consenso que é um impulso transformador que contagia e dispara o melhor da criatividade e da inteligência empreendedora de polos ligados à cultura e ao entretenimento, visando gerar valor dentro de mercados locais e/ou globais. Inovadores que pensam e produzem “fora da caixa”. Três bons exemplos: o movimento da Bossa Nova, em passado remoto; os restaurantes a quilo, em passado recente e os produtores do Estado do Rio, no presente e futuro próximo.

Dos três exemplos, aliás, o mais transformador é o que envolve essa notável mão-e-cabeça-de-obra que, a cada dia, mobiliza um exército de granjeiros, pescadores, agrônomos, enólogos, processadores de alimentos e comerciantes, dos mais remotos aos mais próximos municípios do Estado RJ. Com novidades, como a crescente especialização em helicicultura (criação de escargots), em Friburgo, os novos “maricultores” dos litorais sul e norte do estado, -- os criadores de ostras, mexilhões e coquilles St. Jacques, com suporte técnico e financeiro de grupos internacionais, inclusive -- chegando aos recém instalados vitivinicultores que já estão produzindo vinhos de qualidade em Secretário, na serra fluminense.

E a gastronomia carioca e de outros centros consumidores do “melhor do simples” à mesa, agradece.

E por que gastronomia? Porque diferentemente da alimentação, que é uma urgência diária, (ingerida às vezes de forma apressada), a gastronomia é escolha – sem pressa. A seletiva e às vezes lenta transformação dos frutos, raízes, carnes, peixes, mariscos e carboidratos em prazeres do paladar, por mãos experientes de cozinheiros e chefs dessa nossa geração de “alquimistas” do forno, fogão e da brasa, do Estado, promove não apenas o efeito aglutinador do convívio humano mas, através do encontro da comida com o entretenimento, os bons negócios.

A gastronomia vai, ainda, mais além. Ela turbina os seus dois vizinhos de distribuição de riqueza: a cultura e o turismo, na medida em que abrange um inventário patrimonial de receitas, temperos, utensílios, ingredientes regionais e até crendices populares ou religiosas, e atrai viajantes, inclusive estrangeiros, para a descoberta de saberes e sabores nas cidades históricas, nas fazendas do antigo baronato do café, no Vale do Paraíba, no Polo de Cachaça e nas estreladas pousadas do entorno de Petrópolis. E mantém em tensão dinâmica a extraordinária rede de “blockchaine” que vai buscar diariamente nas planícies, serras, no mar e lagoas fluminenses a matéria-prima ou os produtos acabados que irrigam os canais de distribuição e venda, na capital e nos municípios vizinhos, maiores deste variado território, dividido em 92 municípios, distribuídos por 43,8 mil Km2 de área habitada.

E estes municípios abastecem cerca de 360 mil bares, restaurantes e demais pontos de alimentação, só no Rio de Janeiro, arrecadando algo em torno de 40 bilhões de reais ano para os cofres do estado.Bingo!

Por último, mas não em último, o Rio.  “A cidade fez-se metrópole lambida pelo Atlântico, untada pelo azeite do português, ardendo em pimenta africana” como a descreveu Guilherme Figueiredo. No início, quando o Rio-Colônia virou Rio-Capital, eram as paneladas servidas em charretes que percorriam a cidade e paravam em pontos determinados. Ofereciam caldos, arroz com camarão, peixes, galinhas, perus, carneiros, porcos, carne de vaca, tudo isso acompanhado de muita cebola, verduras e raízes. De sobremesa, pudins, doce-de-arroz, queijo de Minas, compotas, goiabadas, marmeladas e fruta, muita fruta.

Tanto que à noite, na clássica trilogia do C — colégio, convento, caserna — servia-se uma sopa de caju gelado, à guisa de ceia. Era a vitamina C na veia.

Depois, em 1834, um navio americano vindo de Boston chegou ao porto do Rio trazendo a grande novidade: sorvete. No princípio não fez o sucesso esperado — “queima a língua” — diziam. Aí alguém teve a ideia de misturá-lo com groselha e suco de frutas: bingo!

O sucesso foi tamanho, que as sorveterias colocavam um quadro negro do lado de fora, com o horário dos serviços. E as filas davam a volta, inclusive com a presença de mulheres da sociedade – habitualmente circunscritas ao espaço da casa e da calçada.

Mas o Rio-Gourmet nasceu um pouco mais tarde, por volta de 1861, quando o Barão de Mauá instalou na cidade a primeira Fábrica de Gás, permitindo uma alternativa à lenha. E as mansões de Laranjeiras, do Cosme Velho, do Flamengo e Botafogo, agora tinham luz -- já podiam receber até a franja da madrugada. Nasceram, então, as noitadas gastronômicas, regadas à cerveja preta portuguesa, vinho do Porto, vermute, licores – e saraus.

Vida que segue. O Rio é, hoje, um mercado consumidor e midiático de referência, que distribui tanto produtos “in natura”, quanto os insumos que se destinam à Alta Gastronomia, pilotada por chefs estrelados, passando pela Cozinha de Autor e, até, para a “gastronomia de rua”. São novos modelos de economia criativa, cuja proposta é oferecer comida gostosa, com simplicidade, boa aparência e autenticidade.

E as novas plataformas são os quiosques (alguns são até sofisticados), food-trucks, cevicherias, délis, livrarias-gastrô, botequins-gourmets, pés-sujos-e-limpos, asiáticos, temáticos (cozinha paraense, mineira, vegana), os espanhóis das “tapas” e, ainda, no ricochete do recolhimento social forçado pela pandemia, o bem sucedido sistema de delivery. Tudo junto e misturado: mas com estilo!

Ou seja, a mesa carioca é, às vezes, um pouco experimental demais; outras vezes com uma pegada pessoal demais; meio solta, ou ao contrário, com requintes da cenografia-espetáculo,  mas sempre com luz e curvas que surpreendem - como as montanhas, e as mulheres, dessa cidade que tem sido frequentemente Maravilhosa.

*Colunista de gastronomia e vinhos, um dos fundadores da confraria Os Companheiros da Boa Mesa, em funcionamento desde 1982, e um
 dos embaixadores do Turismo do Rio.

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