Queima a língua

Por Reinaldo Paes Barreto*

Consta que o sorvete nasceu há mais de três mil anos, na China. Misturava-se uma porção de neve das montanhas, com suco de frutas e mel. Mais tarde, por volta do século VII, mas ainda na China, o imperador King Tang adicionava leite e arroz, com gelo, para a sua sobremesa. (Não lhe gabo o gosto!)

Vida que segue. Em meados do século XVI, o sorvete foi levado para a Europa e foi se popularizando aos poucos, no ritmo lento da marcha das novidades daquele “antigamente”.  Até que cerca de cem anos depois, em 1686, o italiano da Sicília Procópio Coltelli, residente em Paris, criou em Saint-Germain-des-Prés  o Café Le Procope (em funcionamento até hoje, no 13 Rue de l’Anciènne Comédie), aonde servia além de alguns pratos típicos de bistrô, e vinhos, sorvetes que fabricava em uma máquina que ele mesmo inventou. Foi o primeiro comerciante de sorvetes.

Correm os tempos e os quilômetros corridos, no dia 6 de agosto de 1834, chegava ao Rio o primeiro carregamento de gelo -- 160 toneladas --  vindo de Boston, nos EUA. Envolvido em serragem, o pacote foi enterrado em grandes buracos no sopé do Morro do Castelo, o que permitiu a sua conservação por quatro ou cinco meses. “Queima a língua”, diziam os primeiros cariocas que provaram sorvete. Mas além da pouca untuosidade e como naquela época não havia como conservar o sorvete depois de pronto, as sorveterias anunciavam a hora certa de tomá-lo, causando alvoroço na cidade.

A tal ponto, que até as mulheres “de bem”, que eram interditadas de entrar em bares, cafés e confeitarias, resolveram quebrar o preconceito e faziam fila para experimentar a novidade. Pode-se dizer que o sorvete estimulou o movimento feminista de frequentar lugares até então reservado só para os homens. Tanto que nos primeiros anos do século XX, na Confeitaria Colombo, elas levavam até os velhos a sassaricar na porta...

Vamos andando. No início dos anos quarenta, o sorvete começou, então, a ser distribuído em escala comercial no Rio. O primeiro lançamento foi o Eskibon, em 1942, seguido pelo Chicabon, logo depois. E só aumentou a oferta e a demanda, inclusive em outras praças, de outros estados. Na sequência, surgiu a versão mais bem “vestida”: o Sunday. Como o nome indica, era assim chamado porque oferecido aos domingos, como prêmio de uma semana trabalhada.  Hoje, graças à multiplicidade de que dispõe a tecnologia e, em paralelo, ao retorno a uma quase manufatura – industrializada -- a palavra sorvete é a designação genérica de um sem números de gelados. Desde os preparados com as mais variadas frutas (as do Norte como insumo fazem sucesso), até os cremosos, os picolés, e os que acrescentam álcoois na composição, como cachaça, vodka, poire (o sorbet para lavar o paladar entre dois pratos condimentados), os diets, etc. E o sorvete também não é mais patrimônio do verão. Graças, sobretudo aos italianos, ele é consumido mesmo com os termômetros marcando menos de dois dígitos.

Aliás, quando estive em Roma ainda moço, e solteiro, no fim dos anos sessenta, se dizia que o segredo para uma noite amorosa de sucesso era uísque para o rapaz (relaxar) e sorvete para a “ragazza”  (para efeito contrário: o sangue sair correndo pelas veias). E já não queimam mais a língua!

*Colunista de gastronomia e vinhos, um dos fundadores da confraria Os Companheiros da Boa Mesa, em funcionamento desde 1982, e um dos embaixadores do Turismo do Rio.