A legalização dos jogos de azar no Brasil

Paulo Jobim Filho*

Algumas medidas do governo do presidente Eurico Gaspar Dutra são memoráveis e sobre elas aprendemos na escola, como o restabelecimento das eleições diretas, da liberdade de expressão e do pluripartidarismo. Poucos, contudo, sabem que uma das primeiras medidas de seu governo, em 1946, foi justamente a proibição dos jogos de azar, sob a justificativa de sua incompatibilidade com as tradições morais e religiosas do povo brasileiro. E lá se vão, assim, sete décadas e meia que o país se encontra à margem desse mercado mundial de proporções consideráveis.

Vale destacar, aí, que o termo “consideráveis” aplicado acima não passa de um eufemismo, uma vez que segundo a Global Industry Analysis (GIA), o setor dos jogos, em escala global no ano de 2020, ultrapassou a marca dos US$ 700 bilhões. Para 2026 projeta-se uma cifra de US$ 870 bilhões. Esse capital vai para países líderes do turismo mundial, como Estados Unidos (que arrecada ⅓ da marca total), França, Reino Unido, entre outros, o que, cá para nós, não é mera coincidência.

A situação brasileira, enquanto Estado laico, é, portanto, curiosa. Entre os países integrantes do Grupo dos Vinte (G20), as vinte maiores economias do mundo, a exceção de países em que os jogos são ilegais são três: Indonésia, Arábia Saudita e, é claro, Brasil, sendo os dois primeiros, porém, Estados seculares de maioria muçulmana. Em um âmbito mais abrangente, dentre os 156 países que compõem a Organização Mundial do Turismo (OMT), apenas 45 não legalizaram os jogos de azar, sendo, novamente, 75% deles islâmicos.

O fato novo na alongada discussão sobre a legalização dos jogos de azar em território nacional é que, por iniciativa da Comissão de Turismo da Câmara dos
Deputados, o presidente Arthur Lira acaba de constituir um grupo de trabalho, formado por especialistas, lideranças empresariais e parlamentares, para atualizar o PL 442/91, aprovado em comissão especial da Câmara há cinco anos, sem ter sido levado, até hoje, à deliberação plenária. A demora encontra-se na natureza ideológica da questão, que justamente proibiu a prática no país em 1946, ou seja, a pressão das bancadas religiosas. A visão que tenta-se construir neste artigo, todavia, é um diálogo harmonioso a fim de estudar, sobretudo, os danos sociais causados pelos jogos ilegais com operadores que trabalham à margem estatal a partir da violência e da sonegação de impostos. Afinal, a lógica de mercado se cumpre: havendo demanda, haverá sempre oferta, com alguém disposto a supri-la, a tempo e hora.

Segundo dados disponibilizados pelos integrantes do grupo de trabalho, o jogo ilegal movimenta cerca de 27 bilhões de reais por ano, superando em muito a marca dos oficiais, que, por sua vez, giram 60% menos, cerca de 17 bilhões. As estimativas são que o Brasil perde anualmente algo próximo a R$ 20 bilhões em arrecadação tributária anual, além de outros R$ 6 bilhões em outorgas. Sem mencionar que a legalização do jogo possui potencial de colocar na formalidade 450 mil trabalhadores que atuam no mercado ilegal e que, por isso, não possuem carteira assinada e direitos trabalhistas assegurados. Ao tempo de que, para além disso, estudos projetam a geração de mais 200 mil empregos a partir da legalização em toda cadeia produtiva do turismo.

Seriamente fragilizada pela pandemia da Covid-19, a regularização da indústria dos jogos de azar é a maior luz no fim do túnel para o setor turístico, uma vez que os aportes tributários projetados, se direcionados ao Fundo Geral do Turismo (Fungetur), possibilitarão: o incremento da atividade turística no geral, conferindo maior autonomia operacional aos diversos setores da cadeia produtiva deste; a ampliação de campanhas promocionais do turismo receptivo; compartilhamento de riscos de crédito em financiamentos; e assim por diante.

Nota-se, em parcela fundamental também, a necessidade de reservar-se parte dos recursos para o suporte às atividades de fiscalização do ambiente dos jogos, com o objetivo de fazer frente a práticas de crimes de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro. Da mesma forma, um aporte de recursos deve ser destinado especialmente para a prestação de assistência médica a vítimas de transtornos compulsivos causados pelo vício em jogos.

No contexto da efetividade do controle do Estado em hipótese de legalização do jogo, é importante discutir a oportunidade da institucionalização de agência reguladora especializada para tal fim. Destaca-se que o aparelho estatal brasileiro já dispõe de braços operativos reconhecidos por sua excelência em desempenhar o controle especializado na sonegação e evasão fiscal, bem como na repressão do crime organizado: a Receita Federal do Brasil e a Polícia Federal, bastando, para tanto, fazer pequenos ajustes logísticos para que os órgãos tornem-se operativos na área.

Como era previsível, a simples iniciativa de revitalização do Projeto de Lei 442/91 já está suscitando posicionamentos apaixonados, frutos da sensibilidade do tema em questão. De um lado, uns se posicionam contrariamente à legalização, em sua grande parte por razões puramente moralistas que, arrisca-se dizer, beiram à inconstitucionalidade pela violação do Art. 5º, inciso VI da Carta Magna; enquanto outros se posicionam favoravelmente à legalização parcial, restrita a áreas turísticas de cunho especial e cassinos integrados a resorts.

Há, também, os que defendem uma legalização ampla, com o argumento da presença ostensiva do jogo ilegal em todo o território nacional, que incluiria caça-níqueis, apostas online, bingos e jogo do bicho. Os dados, nesse sentido, estão a favor desta última corrente propositiva, haja vista que segundo dados divulgados pelo Instituto Jogo Legal (IJL), mais de 20 milhões de cidadãos brasileiros apostam diariamente em jogos do bicho, enquanto outros 10 milhões acessam mais de 450
sites no exterior especializados em apostas esportivas e cassinos.

Por dever de ofício, à época em que estivemos à frente da Secretaria Especial de Turismo do Rio de Janeiro (2019/2020), acompanhamos de perto, no Congresso Nacional, o andamento das tratativas em curso para andamento da temática. Isto, pois há imbuída em nós a convicção de que a abertura de cassinos em locais de grande visibilidade turística poderia ser o início de uma “virada de mesa” capaz de melhorar a performance do país no que se refere ao turismo receptivo. Cremos, em suma, que o 32° lugar no ranking mundial do turismo está muito aquém do formidável patrimônio histórico-cultural, arquitetônico e paisagístico do Brasil, sem falar da cordialidade do brasileiro, sempre disposto a receber, que não se encontra em mais nenhum lugar do planeta.

 

*Ex-ministro do Trabalho e Emprego. Foi secretário Especial de Turismo do Rio de Janeiro (2019/2020).