Aplicativos e seus motoristas: feudalismo moderno ou pura exploração?

Wagner Victer*

Sou um grande usuário de aplicativos de transporte, especialmente o 99 e o UBER. Devo fazer cerca de 20 corridas semanais, por razões de trabalho e lazer.
Considero essa moderna ferramenta de mobilidade urbana algo importantíssimo pois oferece também uma oportunidade para que muitas pessoas possam não só complementar sua renda, mas inclusive transformarem isso em uma atividade profissional que para muitos mais acessível que os Táxis, já que historicamente se cobravam fortunas para a transferência de uma “permissão de uso”, concedidas pelos Poderes Municipais e geralmente de forma muito restrita.

Recentemente, ao solicitar uma “corrida” da minha casa, na Ilha do Governador até o Iate Clube Jardim Guanabara, que frequento e que normalmente dá cerca de R$ 7,00 (sete reais), estranhei ao ver uma elevada cobrança de R$ 20,00 (vinte reais).

Ao questionar o motorista, dizendo que a maior demanda na região (chamado tarifa dinâmica) estaria ofertando a ele uma maior oportunidade de ganhos, ele me mostrou que da tarifa de R$ 20,00 (vinte reais), ele só estaria recebendo R$ 8,00 (oito reais), ou seja, menos de 50%, do valor que estaria me sendo descontado.

Da mesma forma, voltando de uma partida no Maracanã, em um sábado chuvoso, ao comentar o ocorrido, e após aceitar uma tarifa de R$ 46,00 (quarenta e seis reais), do Maracanã à Ilha do Governador, também na chamada tarifa dinâmica, o motorista me garantiu que só estaria recebendo R$ 23,00 (vinte e três reais), ou seja, 50% daquele montante.

Ao questionar ambos os motoristas sobre razão dessas retenções elevadíssimas, o que já tinha ouvido também por outros motoristas de aplicativos, soube que o percentual pago ao operador do aplicativo não seria mais linear, mas sim um percentual flutuante e crescente, de forma exponencial, e a partir de um algoritmo secreto, que aumenta na medida em que tarifa se tornava dinâmica, ou seja, não havia portanto um processo de “ganha ganha” entre aplicativo e motorista, mas uma exploração forçada na relação de apropriação das receitas pagas a mais pelos usuários.

Aliás nessas chamadas em momentos de “tarifa dinâmica”, o percentual deveria até ter um redutor da taxa do aplicativo até para incentivar através de ganhos crescentes que induzam motoristas ficarem disponíveis em locais de baixa mobilidade e atraindo para regiões que efetivamente requeiram a tarifa dinâmica dentro de um processo adequado de cobertura.

Durante o auge da Pandemia da covid, conversando com diversos motoristas que me relataram a falta de sensibilidade e de solidariedade das operadoras de aplicativos, para manter a vida de dezenas de milhares de trabalhadores, oferecendo uma redução do
percentual de cobrança, ou qualquer tipo de suporte e aporte para os motoristas como cestas básicas. Muito pelo contrário, as taxas muitas vezes até aumentaram.

Na verdade, esses motoristas que sustentam essa atividade já que investem praticamente 12 horas de trabalho diário, muito acima do normal estabelecido pelas boas práticas, e ainda tem que além de custear o combustível em valor elevado de forma antecipada, além de ter que amortizar e desgastar os seus bens com custos de manutenção que são os veículos ou tem que pagar empréstimos elevados, com taxas de juros, enquanto sequer existem linhas ofertadas diferenciadas para eles, como financiamentos e planos de saúde em grupo para compensar os desgastes por essa atividade ergonomicamente inadequada.

É inaceitável e lamentável que essa situação de elevadíssimas retenções por parte das empresas de aplicativos se perpetue, caracterizando um possível processo de abuso de poder econômico que remete ao Feudalismo, onde um camponês trabalhava o mês inteiro somente para entregar toda a sua produção nas mãos do senhor, recebendo em troca recursos mínimos para a sobrevivência e o direito de continuar trabalhando.

No longo prazo, esse sistema criado por essas empresas, acabarão criando a sua própria autofagia, pois favorece o desenvolvimento de sistemas de aplicativos locais, como inclusive já existem na Ilha do Governador, aonde os valores são fixos sem os descontos escorchantes de cobrança por aplicativos aos seus motoristas, o que acaba sendo algo muito mais aceitável do ponto de vista social.

Da mesma forma, a tendência é que diversas Prefeituras também venham licenciar novos operadores e até desenvolver softwares próprios semelhantes, como é o caso do TáxiRio, que faz exatamente a mesma coisa que a UBER e 99, só que com taxa de 0%, porém só aceitando taxistas. Esse é um conceito esperado incentivará e efetivamente aumenta a renda dos trabalhadores, sem ficarem na mão desses operadores de aplicativos que possivelmente funcionam em outros países como nos Estados Unidos da América (EUA), aonde inclusive certamente esse nível de desconto é menor e não abusivos como aqui o que na prática também é pago pelo usuário como consumidor final.

Aliás, essas operadoras de aplicativos, sequer têm sensibilidade social e grandes contribuições econômicas, até porque o pagamento tributário é baixíssimo, muitas vezes estranhamente colocando os endereços fiscais fora do local onde é prestado o serviço, até em cidades do interior de São Paulo e pouco se tem conhecimento de investimentos relevantes em Projetos de Responsabilidade Social o que seria esperado por corporações desse porte.

Esse fenômeno do domínio que os aplicativos exercem sobre seus motoristas é extremamente preocupante, e acaba se tornando um certo tipo de exploração de trabalho, logicamente requer uma reflexão sobre até que ponto isso é uma relação leal, e o entendimento claro de que o monopólio atual dessas poucas empresas dificulta a entrada de um player que também não se afunde com gastos em marketing e política
de expansão. Nesse caso, cabe ao poder público ficar de olhos abertos e criar suas próprias iniciativas para combater essa forma de Feudalismo Moderno.

 

*Engenheiro, Administrador e Jornalista