Racismo e trabalho

Por: Soraya Lambert*

No último domingo, antes da largada do GP da Áustria, pilotos e mecânicos se ajoelharam e fizeram um minuto de silêncio em respeito às vítimas da covid-19. Na oportunidade, vestiram uma camisa preta com mensagem de “fim do racismo” e “vidas negras importam”. O protesto foi encabeçado por Lewis Hamilton, único piloto negro no grid, que já cobrou por reiteradas vezes um posicionamento da F1 para causas sociais.

Há cerca de um mês e meio, o mundo ficou paralisado ao se deparar com cenas fortes que circularam nas redes sociais. George Floyd, um homem negro, morreu asfixiado após violenta ação de policial, em Minnesota, nos Estados Unidos. Ele implorava para não ser morto enquanto o policial o sufocava ajoelhado sobre seu pescoço. Essa atrocidade, fruto do racismo, gerou inúmeras manifestações nos Estados Unidos e no mundo, com a campanha “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”).

O assassinato de George Floyd fez o mundo refletir e ficar penalizado com essa triste realidade que é o racismo. Racismo que maculou a história da humanidade com dor e sofrimento. Racismo que originou o apartheid, regime de segregação implementado na África do Sul, onde os direitos da maioria dos negros foram retirados pela minoria branca no poder.

Uma das definições de racismo encontradas no dicionário é “o preconceito extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, geralmente considerada inferior.”
No Brasil, a abolição da escravatura se deu há 132 anos, mas o odioso racismo, velado ou explícito, persiste.

Segundo dados do IBGE, no Brasil, 19,2 milhões de habitantes se declaram pretos e 89,7 milhões são pardos, em um panorama de 209,2 milhões de habitantes. Assim, os negros são a maioria da população brasileira. Mas, mesmo sendo maioria, são minoria em cargos de liderança dentro do mercado de trabalho.

O racismo, sem qualquer sombra de dúvida, é componente de estruturação do mercado de trabalho. Reiteradas pesquisas demonstram que a população negra e parda, ainda que tenha o mesmo nível de escolaridade e titulação, encontra dificuldades na obtenção de emprego, bem como ao acesso aos postos de comando e chefia e pagamento de iguais salários. E as dificuldades aumentam no caso da mulher negra, tristemente associada a funções de baixo nível de instrução, como empregada doméstica e serviços gerais. O preconceito, no caso da mulher, além de racial, também é de gênero.

Pensando no contrato de trabalho, a discriminação racial pode se consubstanciar em óbice na admissão, ocorrer no curso do contrato de trabalho, funcionando como impedimento a promoções dentro da empresa, bem como acontecer no término do contrato, como elemento “motivador” para a dispensa.

O empregador, dentro do poder diretivo, tem liberdade para contratar, promover empregados e dispensar, com vistas a atender aos interesses do empreendimento. Mas o poder diretivo não tem o condão de acobertar atos discriminatórios de qualquer ordem, inclusive racial.

Cumpre destacar que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, XLII, é clara ao preconizar que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”.

O artigo 7º, do diploma constitucional, por sua vez, torna expressa a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

A prova da discriminação é do empregado, a teor do preconizado pelo artigo 818, da CLT, mas, caso efetivamente demonstrada poderá ensejar o pagamento de indenização por danos morais em face da ocorrência de racismo na admissão, no curso do contrato e na dispensa, sem prejuízo da reintegração no emprego no caso de dispensa discriminatória.

A Lei no. 9.029/95, em seu artigo 1º, é clara ao dispor que é proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, entre outros.

O artigo 4º, do referido diploma legal, por sua vez, preconiza que o rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, além do direito à reparação do dano moral, faculta ao empregado optar entre a reintegração com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente e acrescidas de juros legais e a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais.

Assim, com amparo na Constituição Federal e nas leis ordinárias, cabe ao Judiciário coibir e punir a discriminação racial, dentro e fora do contrato de trabalho.

E a instituição da política de cotas raciais em universidades do país se consubstancia em avanço para o acesso à educação de nível superior. Mas é preciso mais.

O maior obstáculo, sem qualquer sombra de dúvida, é vencer a chamada “mentalidade escravocrata”, que associa o negro aos postos de trabalho inferiores. É preciso vencer o preconceito e perceber que 132 anos se passaram e a realidade mostra que temos grandes negros professores, médicos, advogados, magistrados e em sem número de profissões, que ultrapassaram toda sorte de dificuldades e venceram.

A luta pela igualdade deve ser diária, permanecendo nos pensamentos e nos corações. E que um episódio tão devastador como o que aconteceu com George Floyd não seja necessário para lembrar que o racismo deve acabar.

*Soraya Galassi Lambert é Juíza Titular da 14ª Vara do Fórum da Zona Sul e convocada no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região desde 2010