Da Disneylândia ao São Paulo Futebol Clube

Por Fernando Rodriguez*

O Brasil chegou a 450 mil óbitos em razão da Covid-19. Números assustadores que trazem na bagagem, além da dor e da tristeza, total insegurança em relação ao futuro. A pandemia mudou a vida do brasileiro e, como não poderia deixar de ser, trouxe reflexos na Justiça do Trabalho.

As audiências telepresenciais, almejadas para um futuro distante, tiveram que vir a galope, em razão do fechamento dos fóruns diante do necessário isolamento social, medida imprescindível de higiene e segurança para evitar a contaminação. Não obstante a modalidade diversa, os princípios e as normas processuais norteadores das audiências presenciais permaneceram intactos.

Juízes, partes e advogados tiveram que acessar as novas plataformas virtuais e se adaptar às dificuldades técnicas que foram surgindo. Abriam-se as portas de um mundo novo porque a justiça não pode parar e o salário é alimento.

O início de uma nova vida requer força, disposição, paciência. As dificuldades existem e serão superadas, paulatinamente. Mas é necessária a parceria de advogados e juízes na administração da Justiça, bem como a presunção de boa fé.

Considerando que 46 milhões de brasileiros não tem acesso à internet e, dentro desse número expressivo, certamente, está contabilizado um grande número de testemunhas e trabalhadores, não é possível a proibição de que tais participes do processo acessem às audiências dos computadores existentes nos escritórios de seus respectivos advogados, desde que observada a utilização obrigatória de máscaras, higienização das mãos com álcool gel e distanciamento obrigatório.

O dever de lealdade processual de partes e procuradores não sucumbiu com o advento das audiências telepresenciais e a condenação por litigância de má-fé atinge, além das partes, suas respectivas testemunhas.

Sem qualquer dúvida, a vida do brasileiro mudou muito, mas as disposições da Constituição Federal, da Consolidação das Leis do Trabalho e do Código de Processo Civil seguem intactas, garantindo o devido processo legal e a ampla liberdade do Juízo na direção do processo, podendo determinar quaisquer diligências necessárias ao esclarecimento das causas.

E o magistrado? É possível dizer que algo mudou para aquele que tem a atribuição constitucional de administrar Justiça no exercício do Poder Judiciário?

Em setembro de 2020, Diego Petacci, juiz substituto da Comarca de Santo André/SP, TRT da 2ª Região, virou manchete dos jornais por questionar a determinação pela instância superior de realização de audiências de instrução por meio virtual. Afirmou o magistrado:

“Não posso deixar de consignar que essa sanha exacerbada de determinações ‘de cima para baixo’ de realização de audiências de instrução por meio virtual ‘a todo custo’ demonstra-se claramente divorciada da realidade, com clara dificuldade de preservação da incomunicabilidade dos depoentes e ainda com ao dificuldade natureza de acesso virtual de todos, em um país em que impera a exclusão digital.” Aduziu, ainda, com ironia contundente que “está faltando que alguns finquem os pés no mundo real e saiam da ‘Disneylândia’ um pouco”.

A utilização da plataforma Cisco Webex, do CNJ, para a realização das audiências telepresenciais, foi fundamental para que a Justiça não parasse diante de uma pandemia galopante e de efeitos nefastos. Atuar em um mundo da fantasia, sem sombra de dúvida, seria deixar as audiências virtuais para aglomerar em fóruns. Assim a afirmação de um Mickey Mouse tupiniquim se torna pueril considerando toda sorte de males que foram evitados com o fechamento dos fóruns e a realização das audiências telepresenciais em momento que as aglomerações decretam sentença de morte.

Ontem, o mesmo magistrado buscou a mídia novamente. Dessa vez, ao trocar a usual toga preta pela camiseta de seu time de futebol. Com o pretexto de homenagear o mais novo campeão paulista, o juiz da camiseta tricolor ainda transcreveu o hino do São Paulo Futebol Clube numa ata de audiência. Rivalidades futebolísticas à parte, nem o mais devotado torcedor são-paulino poderia fechar os olhos a um magistrado que perde a noção do que é ser juiz e da finalidade da audiência.

Cumpre destacar que a Resolução nº 305/2019, do CNJ, que estabelece os parâmetros para o uso das redes sociais pelos membros do Poder Judiciário é cristalina ao dispor que “a atuação dos membros do Poder Judiciário deve ser pautada pelos valores da independência, da imparcialidade, da transparência, da integridade pessoal e profissional, da idoneidade, da dignidade, honra e decoro, da igualdade, da diligência e dedicação, da responsabilidade institucional, da cortesia, da prudência, do sigilo profissional, do conhecimento e capacitação”
Assim, o magistrado, como alguém que tem a função constitucional de administrar a Justiça no exercício do Poder Judiciário, deve ser digno da confiança dos cidadãos atuando com tais predicados.

A credibilidade da referida instituição tem como um dos pilares de manutenção a liturgia do cargo. Juiz é juiz e tem que impor respeito e se fazer respeitar. Deve se valer de traje e vocabulário adequados, mantendo o decoro. Camisas de futebol são vestimenta utilizada pelos jogadores em campo e por seus respectivos torcedores. Não se coadunam, jamais, com a seriedade de alguém que administra a justiça. Juiz é Juiz. Não é árbitro de futebol. Por outro lado, a ata de audiência deve transcrever com exatidão o que aconteceu na audiência. Hino de clube campeão é de bom alvitre tocar no estádio e onde o torcedor quiser. Juiz, em audiência, tem o dever de ser imparcial. Não pode ser torcedor.

Nesse momento tão difícil em que o brasileiro não vê luz ao final do túnel, é fundamental acreditar nas instituições. Acreditar que o Poder Judiciário é um órgão sério e instituído para dar a cada um o que é seu. E essa seriedade passa bem longe da Disneylandia e de manifestações de torcedores fanáticos.

*Advogado