O combate à fome não pode esperar

Paulo Jobim Filho*

Por ocasião do Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento, promovido recentemente pela Associação Brasileira de Supermercado (ABRAS), o ministro Paulo Guedes (Economia) defendeu que sobras de restaurantes sejam destinadas a pessoas em situação de rua e outros grupos vulneráveis, preconizando, dessa forma, que toda alimentação pronta que não for utilizada diariamente em restaurantes seja distribuída para esses segmentos menos favorecidos, dentro da lógica de que “melhor dar do que deixar estragar”.

Embora a preocupação com a questão da segurança alimentar no alto escalão do governo seja meritória, mormente agora que estamos vivenciando efeitos desastrosos da pandemia que penaliza principalmente os mais vulneráveis, o tema em questão merece uma reflexão mais profunda, tendo em vista que a proposta de doação de alimentação pronta envolve riscos sanitários intrínsecos ligados ao manuseio e a guarda dos alimentos, o que é muito difícil de garantir em um contexto disperso de execução. Além disso, a proposta passa mensagem que pode ser explorada negativamente junto à opinião pública de que se trata de repassar restos de comida para quem está com fome, sem os devidos cuidados que se impõem.

Ao nosso ver, a delicada questão do desperdício de alimentos e do combate à fome no curto prazo deve mudar de foco, passando do alimento pronto, tal como cogitado, para alimentos in natura, não perecíveis a curtíssimo prazo, como frutas, verduras, legumes e outros alimentos que integram a denominada hortifruticultura, núcleo central dos produtos operados nas Centrais de Abastecimento espalhadas pelo país.

A ideia é mobilizar, como ponto de partida, as mais de vinte Centrais de Abastecimento vocacionadas para a gestão no atacado de produtos alimentícios, a exemplo da CEAGESP e da CEASA-RJ - as duas maiores centrais de abastecimento da América Latina - para a montagem, ampliação ou modernização de bancos de alimentos, onde seriam armazenados com segurança, para posterior doação, as toneladas de alimentos in natura que não foram comercializados no dia, cujo destino natural é o lixo.

Ao lado dessa oferta regular das sobras do mercado, o governo deveria assegurar e ampliar os incentivos à agricultura familiar em cada localidade, direcionando grande parte da produção para os bancos de alimentos das Centrais, o que ampliaria significativamente a oferta regular do montante de doações em benefício de instituições de caridade devidamente cadastradas e da população mais vulnerável. Esse círculo virtuoso se completa quando esses bancos de alimentos passarem a receber candidatos inscritos no programa Meu Primeiro Emprego, formando mão-de-obra apta a ingressar no mercado de trabalho, no ramo de manipulação de alimentos.

O outro elo da cadeia em prol da assistência alimentar dos mais vulneráveis, com enorme potencial de contribuição, são os supermercados atacadistas, que poderiam se engajar no programa doando alimentos diretamente ou em parceria com outras instituições, possibilitando, assim, a ampliação significativa do volume e variedade de produtos aptos à doação. Neste caso, o engajamento do governo é indispensável, adotando medidas plausíveis de incentivo à participação setorial, tais como a flexibilização de regras que tratam do tempo de validade de produtos alimentícios, dentre outras julgadas pertinentes, incluindo a certificação de benemerência, para os participantes.

Julgamos, por fim, que embora a questão do combate à fome no Brasil não deva se resumir a medidas assistencialistas de curto prazo, mas com a implementação de políticas públicas de amplo espectro capazes de corrigir disfunções estruturais na produção de alimentos. A verdade é que a problemática da fome não pode esperar e a melhor forma de atuar é aqui e agora, dando as mãos a quem precisa de socorro, com ações estimuladas pelos governos federal e estadual com a participação da sociedade civil.

*Administrador público e mestre em Ciências. Foi Ministro de Estado no governo FHC.