Os pequenos delitos nossos de cada dia

Por Francisco Guarisa*

Historicamente, o Brasil sempre conviveu com diversos conflitos éticos, desde os mais comuns até os considerados complexos, que só aparecem quando bem investigados e transformados em “escândalos”. Porém, em meados da década de 70, um fato marcante passou a fazer parte de nossas vidas, através da famosa Lei de Gerson, propagada por uma marca de cigarros e protagonizado pelo craque homônimo do futebol. Seu slogan “gosto de levar vantagem em tudo, certo?” foi a cereja que faltava no bolo da hipocrisia social, passando a legitimar no inconsciente coletivo os pequenos delitos que, de alguma forma, coexistem desde o Brasil Colônia.

A partir daí, difundiu-se o “jeitinho brasileiro” de fazer o errado parecer certo. O querer levar vantagem contaminou as relações e ajudou a legitimar questões ligadas à corrupção, por exemplo, que passaram a ser mais toleradas e tragadas pelo cotidiano antiético. Então, como falar de ética em uma sociedade que, em linhas gerais, passa a percepção de que preza pela sua falta?

A banalização do antiético no Brasil proporcionou a aceitação de pequenos delitos, que hoje fazem parte do dia a dia sem qualquer tipo de vergonha ou pudor, sob a égide do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Como um dos diversos exemplos, temos o cidadão que reclama sobre a corrupção de diferentes governos ao assistir o noticiário em um canal de TV por assinatura. Sua indignação seria legítima se ele não tivesse assistido através de um aparelho que burla os sinais de transmissão dos canais oferecidos por TVs por assinatura. Tudo a custo zero. Vale ressaltar, nos últimos doze meses houve uma queda significativa no número de contratos ativos e na audiência deste segmento, com uma perda de quase um terço de seu público. É bem verdade que diversas pesquisas mostram um crescimento expressivo dos streamings (Netflix, Disney+ etc.), mas não temos como negar que o aumento da oferta destes aparelhos piratas contribuiu para essa queda de contratos. Entre o meio de 2020 e janeiro de 2021, só no Rio de Janeiro, foram apreendidos pela Receita Federal mais de 900 mil desses aparelhos que burlam os sinais de transmissão de canais de TV por assinatura.

Essa cultura está tão arraigada na população, que fica difícil para as pessoas assumirem seus pequenos delitos, praticados cotidianamente. É fundamental fazermos uma reflexão urgente sobre essas práticas, para que possamos cobrar com moral por um mundo melhor. Caso contrário, a hipocrisia social prevalecerá e continuaremos a conviver com os mais variados delitos cotidianos, como a parada em fila dupla na porta do colégio, o fechamento de cruzamentos no engarrafamento, o estacionamento (rapidinho) na vaga de idosos e deficientes, o casal que ocupa duas filas do supermercado com os carrinhos de compras para ver qual caixa irá mais rápido ou o lixo jogado na rua com a desculpa de que precisa garantir o emprego dos garis, entre centenas de outros.

Temos também aqueles delitos velados, ocultos pela vergonha da descoberta, como as fraudes da Previdência para obtenção de benefícios. Ou ainda, o pagamento de propina a algum agente público para ser liberado de uma multa e/ou infração, além daqueles em que as mulheres não oficializam suas relações para não perderem a pensão vitalícia a que têm direito depois do falecimento do pai, funcionário público. São tantos casos que teríamos uma edição de jornal totalmente dedicada ao tema.

Até mesmo a pandemia trouxe à tona uma série de situações inusitadas, como a de pessoas que curiosamente surgiram com comorbidades para poderem se vacinar precocemente. Outras, por interesse pessoal, que se sentiram insatisfeitas com o tipo de vacina recebida na primeira dose, resolveram burlar as diretrizes do plano nacional de vacinação contra a Covid-19 e deram um “jeitinho” de se vacinar duplamente com a de outro fabricante. Um ato que tira o direito à vacina de outro cidadão, em um momento premente de imunização rápida e abrangente para minimizarmos os riscos de contaminação e retomarmos com todas as atividades econômicas.

Por essas e outras, não podemos mais permitir que a “esperteza” prevaleça sobre o bom senso e a ética cidadã. Não custa repetir que vivemos em um mundo que clama por solidariedade, humanidade, cidadania, respeito à diversidade e pela preservação do planeta. Talvez, ser o malandro não seja mais o diferencial, mas tenho a confiança de que o futuro mostrará quem será o otário nessa história.

*Consultor e Executivo de Marketing e Gestão