A distopia da inclusão social

Por Francisco Guarisa*

Recentemente reli o livro “1984”, de George Orwell, que exalta o mundo distópico em um modelo ditatorial. Um universo onde a vida dos cidadãos é totalmente controlada, a imprensa e toda fonte de informação é invariavelmente manipulada, além de impor uma adaptação da própria língua do povo como forma de poder absoluto. Uma obra conceitualmente não muito distante de outra distopia literária, o cultuado “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, onde uma casta dominante controla toda a sociedade futurista, através de um condicionamento biológico e psicológico que possibilite uma pseudo harmonia social. Em ambas as obras de ficção destaca-se uma sociedade autocrática, regida pela tirania, em nome da ordem e do progresso.

Ao reler a realidade dura de “1984”, o livro me fez refletir se não é possível traçarmos algum paralelo, guardando as devidas proporções, com o que estamos vivenciando nestes últimos tempos. Só que uma “distopia do presente”, apesar de normalmente ela se caracterizar por apresentar modelos futuristas, onde a inclusão social se apresenta de forma unicamente utópica. Não se pode negar que, em um contexto globalizado e conectado, a possibilidade de aproximação de culturas e povos, assim como a democratização de informações é gigantesca. Contudo, não podemos desprezar que a velocidade de propagação global do Coronavírus e sua consequente infecção, mudou totalmente a dinâmica dos negócios e dos relacionamentos, causando impactos profundos na sociedade.

No Brasil, a distopia se dá através de uma realidade excludente da maioria da população, imposta há décadas e atualmente evidenciada pela pandemia, seja de forma remota ou presencial. O fato é que no país, distanciamento social e lockdown têm sido um privilégio para uma parcela relativamente pequena da sociedade, onde grande parte da população ainda vive em condições precárias. Por exemplo, de acordo com uma pesquisa recente do Instituto Trata Brasil, quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e aproximadamente 100 milhões não têm serviço de coleta de esgoto no país. Além disso, desse universo, cinco milhões e meio estão nas 100 maiores cidades brasileiras, o que equivale à população da Noruega. Aliada à essa calamidade sanitária, essa exclusão se manifesta também de outras formas, seja na educação, na democratização do acesso à internet, no trabalho (desemprego) ou na saúde.

Nas distopias, tanto literárias como cinematográficas, normalmente temos alguém que luta contra o sistema, que tenta ser um agente de mudança, que sobrevive contra tudo e contra todos. Um herói solitário que faz o contraponto a uma modus vivendi opressor. O problema é que no mundo real fica difícil encontrarmos tais heróis, em função de tanta desigualdade existente e das dificuldades impostas pelos governos. Podemos encontrar alguns agentes de mudança, que continuam lutando para não sucumbirem ao sistema, mas ainda assim atuam de forma isolada.

É fato que implementar uma mudança é uma tarefa árdua, em função da sociedade ser extremamente heterogênea e carregar consigo desejos e aspirações distintas. O desafio é encontrar o ponto comum, impulsionado por uma “utopia construtiva”, mesmo que suas expectativas sejam diversas. Precisamos alimentar uma utopia que se manifeste através do desejo das pessoas por um mundo melhor, mais humano e igualitário, olhando para horizontes mais distantes e quase inatingíveis. Precisamos fortalecer o exercício democrático participativo, envolvendo toda a sociedade nos seus mais variados segmentos e níveis de poder. Esse desejo é que certamente levará o país a um novo sistema econômico, uma revisão social e ambiental, que apresente propostas mais inclusivas e sustentáveis.

O momento é oportuno para sonharmos e sonhar não custa nada. Até porque, apesar de toda a heterogeneidade existente, a pandemia deixou evidente que vivemos em um único planeta, com problemas globais muito próximos, que podem convergir para sonhos e soluções comuns. O problema é que não dá mais para esperar, caso contrário correremos o sério risco de continuarmos com essa distopia vigente. Como um eterno sonhador, deixo aqui uma frase do incrível ser humano e social, Dom Hélder Câmara: “A utopia partilhada é a mola da História”.

*Consultor e Executivo de Marketing e Gestão