A revolução dos lares e suas transformações familiares

Por Francisco Guarisa*

Historicamente, o ser humano sempre teve uma relação não muito linear com a sua casa, fosse ela fixa ou temporária. Em uma rápida reflexão, podemos perceber que essa relação foi pautada por momentos extremos e regida por uma relativa dualidade amor x ódio. Uma mistura de satisfações e insatisfações que, dependendo do contexto, “explodem” o ambiente e geram diferentes reações, tanto no âmbito pessoal como profissional. Buscar uma casa melhor, sair do aluguel e tentar uma casa própria, fazer uma obra, comprar utensílios para casa, são alguns dos pensamentos que geram reações distintas e conflituosas. Apesar dessa visão turbulenta e não linear, posso inferir que existe um senso comum de que o lar sempre passou uma sensação de “porto seguro”. Um lugar de acolhimento, onde podemos agradecer o que temos e, como dito, promover discussões, planejar mudanças e/ou sonhar por algo melhor. Infelizmente, essa é uma realidade distante para quase 15% da população, que ainda vive em busca de condições dignas de vida e moradia. Esses dados de 2020 da FGV, em conjunto com o Instituto Trata Brasil, demonstram ainda que aproximadamente 16% da população não tem abastecimento regular de água e 47% não tem coleta de esgoto. Dessa forma, fica difícil qualquer pensamento além da sobrevivência.

Apesar de toda essa dificuldade, independentemente da condição socioeconômica, esses últimos tempos nos fizeram repensar sobre nossa relação com a casa. Vivemos momentos iniciais de ansiedade e insegurança, por percebermos todas as dificuldades de enfrentar uma situação tão adversa como uma pandemia e seu respectivo isolamento social. Tivemos que nos reinventar e promover adaptações, temporárias ou não, também como forma de sobrevivência. Com isso, nosso modus vivendi foi revisto, os sonhos foram reavivados, além da criação de novos hábitos de consumo e “necessidades” de compra.

Como exemplo dessas novas “necessidades” de compra o Google Survey realizou uma pesquisa em julho de 2021 com 1.000 brasileiros conectados. Na amostra, o estudo mapeou quatro níveis de motivação das pessoas ao adquirirem produtos para a casa. O primeiro deles está relacionado à funcionalidade e valoriza as novas configurações de rotinas e usos da casa. O segundo, destaca o conforto, evidenciando a necessidade de se sentir bem no próprio lar. O terceiro, procura compensar de alguma forma as experiências antes vividas fora de casa e está relacionado à performance. Por último, a inovação, diretamente relacionada ao aumento no desejo de experienciar novidades. A pesquisa ainda destaca que tais motivações se manifestam de forma bastante heterogênea, pois assumem diferentes dimensões de valor de acordo com a classe socioeconômica. Por exemplo, famílias com renda maior tendem a olhar mais para itens como conforto e performance, chamado de consumo de “upgrade”, para melhorar algo existente. Para as famílias de menor renda, o destaque ficou para a funcionalidade, com o foco em produtos de necessidade básica e, até mesmo, comprados pela primeira vez.

Todas essas pesquisas e reflexões, a meu ver, tendem a apontar para uma direção caracterizada por uma via de mão única, onde família, lar, bem-estar, saúde, respeito, educação, meio ambiente, trabalho e renda, entre muitos outros, seguirão para um destino sustentável comum. O desafio está em percebermos quais os limites que podemos e devemos impor nesta nova etapa para atingir esse objetivo de forma segura e igualitária. Uma dúvida é se ao longo dessa via precisaremos valorizar tantos aspectos materiais ou perceberemos que menos é mais e buscaremos uma vida mais minimalista. Outro questionamento é se as novas relações capital x trabalho contribuirão para o atingimento desse objetivo, em função de tantas incertezas geradas nesses últimos tempos. Sinceramente, só o tempo dirá. De qualquer maneira, empresas e marcas precisam estar atentas e adaptadas a essa nova realidade, para que continuem competitivas e prontas a atender todas as necessidades, desejos e demandas desse novo consumidor.

Enquanto isso, vamos nos distraindo em casa com as múltiplas opções de plataformas de streamings e sua liberdade de escolha em filmes, séries, vídeos e músicas. Um item extremamente importante, que tem alterado a dinâmica da convivência familiar de diversos lares e contribuído para a sobrevivência de muitos neste período recente. Inegavelmente, esta forma de entretenimento abriu uma janela incrível de reflexões sobre temas importantes, que têm contribuído para o avanço da humanidade, como racismo, meio ambiente e diversidade de gênero. O problema está no tempo em que temos destinado para este tipo de entretenimento e seus possíveis danos sociais e psicológicos, mas isso é assunto para uma outra série no melhor estilo binge-watching.

*Consultor e Executivo de Marketing e Gestão