Glenn Greenwald diz em livro que mensagens da Lava Jato ajudaram a enfrentar bolsonarismo

Ricardo Balthazar (Folhapress)

O jornalista que há dois anos revelou as mensagens trocadas por integrantes da Lava Jato nos bastidores da operação diz que desconfiava do hacker que lhe entregou o material, nunca esteve frente a frente com ele e soube sua identidade só quando ele foi preso e confessou seus crimes.

Num livro sobre a experiência que será lançado daqui a duas semanas, o americano Glenn Greenwald explica que procurou evitar que as desconfianças transparecessem para não minar seus esforços para acessar os arquivos oferecidos pelo hacker e assim poder examiná-los com os próprios olhos.

Para Greenwald, o mais importante não era descobrir a identidade da sua fonte ou entender sua motivação, mas obter os arquivos, porque só assim teria como verificar de forma independente a consistência do material, avaliar o conteúdo das mensagens e adquirir a segurança necessária para publicá-las. "À medida que fui abrindo e lendo os documentos, eu fiquei cada vez mais convencido da autenticidade desse arquivo e, consequentemente, da fonte", afirma o jornalista no livro. "Parecia impossível para qualquer pessoa fabricar ou forjar um arquivo tão extenso, detalhado, sofisticado e complexo."

"Securing Democracy" ("Garantindo a Democracia") será lançado no dia 6 de abril nos Estados Unidos, no Canadá e no Reino Unido, e logo depois na Europa. Ainda não há título definido para a edição brasileira nem data para seu lançamento, mas a expectativa do jornalista é que ela saia até julho. Divulgadas em 2019, primeiro pelo site The Intercept Brasil e depois pela Folha de S.Paulo e outros veículos, as mensagens comprometedoras colocaram em xeque a reputação do ex-juiz Sergio Moro, que conduziu a Lava Jato no Paraná até deixar a magistratura para ser ministro do governo Jair Bolsonaro, em 2018.

Elas ressurgiram no início deste ano, quando o Supremo Tribunal Federal concedeu ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva acesso ao material, e foram decisivas para o convencimento dos ministros do STF que na terça (23) declararam Moro parcial como juiz no caso do triplex de Guarujá, agora anulado. Os ministros Edson Fachin, relator da Lava Jato no tribunal, e Kassio Nunes Marques, criticaram o uso das mensagens hackeadas no julgamento e defenderam a necessidade de investigações mais profundas para verificar a integridade do material, mas ficaram isolados na defesa do ex-juiz.

O nome do hacker, Walter Delgatti Neto, é mencionado uma única vez no livro de Greenwald. O jornalista afirma que só se sentiu à vontade para identificá-lo como sua fonte depois que Delgatti deixou a prisão, em setembro do ano passado, e começou a dar entrevistas sobre o assunto. Os contatos entre eles tiveram início em maio de 2019. Delgatti procurou primeiro a ex-deputada Manuela D'Ávila, que lhe sugeriu falar com Greenwald, famoso por ter publicado documentos secretos de agências de espionagem dos Estados Unidos e de outros países obtidos por Edward Snowden em 2013.

O jornalista conta que desconfiava do hacker porque muitas de suas alegações pareciam inverossímeis. Ele dizia que estudara na Universidade Harvard, vivia nos EUA e nunca mais voltaria ao Brasil, mas tinha inglês rudimentar e pedia para conversar em português quando falavam pelo telefone. Ele também parecia descuidado, segundo Greenwald, e chegou a lhe perguntar se queria que invadisse outras contas no aplicativo Telegram depois de copiar as conversas da Lava Jato –exatamente o tipo de ação que podia tornar o jornalista cúmplice de seus crimes, aos olhos da Justiça brasileira.

A leitura das mensagens obtidas pelo invasor logo convenceu o jornalista do valor do material. Greenwald descreve no livro os procedimentos jornalísticos adotados para verificar a autenticidade dos arquivos, como o cruzamento das informações encontradas nos diálogos com documentos e outras fontes. Greenwald acha improvável que o material tenha sido adulterado pelo hacker antes da entrega das informações, mas reconhece que isso é virtualmente impossível de ser demonstrado. "Você nunca pode provar o contrário: que nada foi modificado, fabricado ou forjado", afirma o jornalista no livro.

Moro e os procuradores da antiga força-tarefa da Lava Jato no Paraná sempre se recusaram a reconhecer a autenticidade das conversas e colocaram em dúvida a integridade dos arquivos, mas nunca apontaram qualquer indício de fraude no material divulgado pelos jornalistas e pela defesa de Lula. Um dos fundadores do site The Intercept e de sua versão brasileira, hoje afastado dos dois empreendimentos, Greenwald dedica um capítulo do livro às negociações que conduziu com os principais grupos de comunicação do país em busca de parceiros para explorar o conteúdo das mensagens vazadas.

O jornalista critica a concentração do setor nas mãos de poucas empresas familiares, mas afirma que o envolvimento de outros veículos era necessário para ampliar a capacidade de análise dos arquivos e conferir ao material um selo de credibilidade que o Intercept não teria como obter sozinho. Greenwald chegou a procurar o Grupo Globo, com o qual trabalhara antes no caso Snowden, mas diz que se desentenderam antes de discutir os detalhes das mensagens. A Folha de S.Paulo teve acesso à íntegra do material recebido pelo Intercept e publicou 24 reportagens como resultado da parceria com o site.

Como indica o subtítulo do livro ("Minha luta por liberdade de imprensa e justiça no Brasil de Bolsonaro"), Greenwald vê a Lava Jato como uma das forças que deram impulso à ascensão do bolsonarismo e a divulgação das mensagens como uma forma de combater tudo que o presidente representa. "Eu via a Vaza Jato como sendo tanto sobre a viabilidade de uma imprensa livre e dos valores democráticos na era Bolsonaro quanto era sobre corrupção e impropriedades dentro do Judiciário e do Ministério Público", diz ele, que hoje publica numa plataforma para jornalistas independentes, o Substack.

Greenwald rememora as perseguições sofridas por ele e seu marido, o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ), e responsabiliza Bolsonaro até mesmo por medidas tomadas pelo Ministério Público, que denunciou o jornalista como cúmplice de Delgatti e recorreu quando a Justiça não aceitou a acusação. Em fevereiro, quando o americano já tinha colocado o ponto final no seu livro, a defesa de Lula ganhou acesso ao material obtido pela Polícia Federal após a prisão do hacker, e a Procuradoria-Geral da República dissolveu a força-tarefa de Curitiba, depois de meses de atritos com seus integrantes.

Rompido com Moro desde que ele deixou o governo e o acusou de tentar interferir na PF para proteger os filhos contra investigações, Bolsonaro foi um dos primeiros a se animar com o ressurgimento das conversas. "Tem meu nome lá", disse o presidente em fevereiro. "Vocês vão cair para trás." O presidente chegou a divulgar alguns diálogos no Twitter, como prova de que os filhos eram perseguidos por investigadores, mas era mentira. Bastava ler as mensagens com atenção para ver que se tratava apenas de dois procuradores falando de uma foto compartilhada no Telegram e fazendo uma piada.

SECURING DEMOCRACY: MY FIGHT FOR PRESS FREEDOM AND JUSTICE IN BOLSONARO'S BRAZIL
Preço US$ 27,95 (ebook). 280 págs.
Autor Glenn Greenwald
Editora Haymarket Books