Primeira morte no RJ acende alerta sobre unidades de saúde básica na capital

JÚLIA BARBON E ÚRSULA PASSOS
RIO DE JANEIR, RJ (FOLHAPRESS)

"Antes dava para ir levando, mas agora vai fazer falta." A frase, de um médico carioca que não quis se identificar, resume bem a situação de improviso da rede básica de saúde do Rio de Janeiro antes e depois da entrada e avanço do novo coronavírus na cidade, mais preocupante após a primeira morte no estado.

O governo estadual confirmou nesta quinta (19) a primeira morte por coronavírus. A vítima, uma mulher de 63 anos, diabética e hipertensa, internou-se em uma unidade de saúde de Miguel Pereira, no interior do estado, na segunda (16) e morreu no dia seguinte.

Ela era empregada doméstica, trabalhava no Rio, e apresentou sintomas após ter contato com a patroa, que que viajou à Itália e teve exame positivo para o coronavírus.

A Secretaria de Saúde ainda analisa material do paciente morto em um hospital privado em Niterói, na região metropolitana do Rio.

Na capital, deixou de ser raro ver a triagem de pacientes sendo feita no estacionamento das unidades, médicos reaproveitando jalecos descartáveis e funcionários escondendo ou comprando por conta própria álcool em gel.

Essas cenas foram relatadas por funcionários de seis unidades de atendimento primário da capital fluminense, como clínicas da família e centros municipais de saúde (CMS), que são a principal porta de entrada dos pacientes no SUS e o maior gargalo da saúde do Rio.

Os profissionais ouvidos aguardam o pico da doença com apreensão, muitos com a certeza de que ficarão doentes. Isso porque suas unidades sofrem com falta de estruturas, insumos e profissionais. A cidade tem 55 dos 63 casos confirmados no estado -o segundo maior número do país.

"No Rio, a maioria da atenção primária foi construída em contêineres, com refrigeração e sem janelas. O ideal seria termos locais amplamente ventilados e abertos", diz o médico de família Carlos Vasconcelos, diretor de comunicação do sindicato dos médicos do município (Sinmed).

Quem sente mais, como sempre, são as favelas e os bairros mais pobres. Uma clínica da família na Rocinha (zona sul) está sem água há 20 dias, abastecida por caminhões-pipa. O motivo não se sabe, já que a equipe de manutenção foi cortada há alguns meses.

A unidade está tendo que se virar sem dez dos seus cem profissionais de saúde, que apresentaram sintomas compatíveis com os do coronavírus e estão afastados por duas semanas. Não há papel para secar as mãos, nem para imprimir receitas.

"Em uma unidade que vistoriei na semana passada na zona norte, o cloro acabou e as meninas da limpeza estavam misturando detergente com água. Mas o detergente também acabou naquele dia. Era um prédio de cinco andares, sem estoque, sem nada", diz Alessandra Nascimento, subcoordenadora de saúde na Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

Em Guaratiba, na zona oeste, a região mais afetada pela crise, os médicos do CMS estão usando um capote por turno (veste esterilizada que cobre o corpo), apesar da indicação de trocá-lo a cada atendimento de sintoma respiratório. O mesmo ocorre na clínica da família de Manguinhos, comunidade da zona norte.

Máscaras cirúrgicas, máscaras N95 (que filtram partículas) e álcool em gel também estão em falta em Guaratiba. Um dos funcionários chegou a comprar, com o próprio dinheiro, um galão do produto, que está sendo distribuído entre as equipes e os pacientes na entrada.

No CMS Heitor Beltrão, na Tijuca (zona norte), não se via álcool em gel e tampouco pessoas de máscaras nesta terça (17). No subsolo, uma grande pia de metal com diversas torneiras para lavar as mãos não dispunha de sabão, sabonetes ou detergente.

Nesta semana, as unidades de atenção primária mudaram seu esquema de atendimento, seguindo um protocolo da Secretaria Municipal de Saúde. Consultas agendadas e visitas domiciliares foram suspensas, sendo mantidas apenas em casos como pré-natal de alto risco e tuberculose.

Quando o paciente chega ao local, é recebido por um funcionário na porta. Se tiver sintomas respiratórios, vai para a triagem, feita em área externa quando há. Só então, caso necessário, é atendido nos consultórios dentro da clínica, muitos deles sem janelas.

Pessoas com síndrome gripal leve são orientadas a ficarem isoladas em casa -o que é considerado "piada" por um médico, levando em conta a realidade das favelas, onde muitas famílias dormem juntas em um mesmo cômodo.

Esses casos sintomáticos são monitorados pela equipe local por telefone, de dois em dois dias. Os únicos que têm sido testados para o vírus são os pacientes transferidos para hospitais e internados, conforme orientação do Ministério Público.

"A falta de testes é o que está angustiando mais. Na prática, um número muito grande de gente gripada está chegando e não temos como dar uma resposta além do isolamento. Tem profissionais adoecendo sem acesso ao teste, com dificuldade de reposição", diz Carlos Vasconcelos, do sindicato.

A crise do coronavírus ameaça uma rede básica que já vinha se deteriorando após uma reestruturação do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos). Desde o fim de 2018, ele extinguiu 184 equipes de saúde da família, segundo a Defensoria, argumentando que o sistema foi expandido de forma desordenada por seu antecessor, Eduardo Paes (DEM).

Em fevereiro, Crivella decidiu rescindir o contrato com uma organização social que geria grande parte das unidades, passando-as para a empresa municipal RioSaúde. Nesse processo, nem todos os funcionários demitidos foram recontratados, o que fez com que a Defensoria e a Promotoria fluminense entrassem na Justiça.

"Houve uma deterioração do serviço desde 2015, com um agravamento desde 2018, e hoje o quadro é preocupante. Tem uma vacância enorme de profissionais há um mês, e agora ainda tem o afastamento de funcionários diante da pandemia", diz a defensora Alessandra Nascimento.

Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou que a empresa RioSaúde já preencheu 3.195 do total de 3.765 postos de trabalho vagos e que as contratações seguem sendo realizadas em ritmo acelerado.

Sobre a falta de insumos, respondeu que publicou processos no Diário Oficial para compra emergencial de estoques, mas negou a falta de itens. "Todos os equipamentos de proteção individual, como óculos, capotes, luvas e máscaras, estão disponíveis nas unidades e devem ser usados pelos profissionais."