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Rio: Cidade da Baixada Fluminense vive dilema

Duque de Caxias tem saúde à beira do colapso e comércio aberto a mando da milícia

Por: Ana Luiza Albuquerque/Folhapress

Logo após a confirmação do primeiro caso do coronavírus em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, ao final de março, o prefeito Washington Reis (MDB) afirmou que as igrejas evangélicas ficariam abertas porque a cura do coronavírus viria de lá.

Desde então, a disseminação do vírus explodiu na terceira cidade mais populosa do Rio e Caxias se tornou o segundo município com o maior número de casos e de óbitos. Até sexta (7), a cidade acumulava 685 registros da doença e 96 mortos, o que corresponde a uma taxa de letalidade de 14%, superior à estadual, de 10%, e à nacional, de 7%.

O decreto que ordenou o fechamento do comércio no município chegou tarde, apenas no dia 3 de abril, depois que todas as demais cidades da Baixada já haviam determinado a suspensão das atividades. Ainda assim, mesmo após o decreto da Prefeitura, diversos estabelecimentos seguem funcionando. Em alguns casos, sob ordens da milícia, que continua a extorquir os comerciantes com a cobrança de suas "taxas de segurança".

Diante da demora na tomada de ações e da continuidade das atividades comerciais, os casos escalaram em Caxias. Um dos infectados foi o próprio prefeito Washington Reis, que buscou a cura da doença não nas igrejas evangélicas, mas em um hospital particular da zona sul da capital, onde ficou 13 dias internado.

Não tiveram a mesma possibilidade as centenas de pacientes que aguardam leitos na rede pública de saúde. Na rede municipal de Caxias, a ocupação por pacientes pela doença tem chegado a 100%. São 24 leitos de enfermaria na UPA Beira Mar e apenas seis leitos de UTI no hospital Moacyr do Carmo. Neste hospital, imagens do dia 25 de abril mostraram 15 corpos acumulados fora das gavetas refrigeradas do necrotério.

Tentando contornar a falta de leitos, a Prefeitura inaugurou o hospital Municipal São José, na segunda-feira (4). A unidade conta com 128 leitos de UTI, mas, por enquanto, apenas 41 estão ocupados. Segundo profissionais de saúde com quem a reportagem conversou, nem todos os leitos foram ativados porque não há funcionários para operá-los, como também acontece em outros hospitais do Rio.
O estado também promete entregar na primeira quinzena de maio um hospital de campanha com 200 leitos intensivos.

Diante da escalada de casos do novo coronavírus e do esgotamento da capacidade de atendimento de todos os pacientes, a Justiça do Rio determinou que o estado e o município abrissem 73 leitos até o dia 30 de maio e 91 até o dia 15 de junho. A decisão foi tomada no contexto de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público, que pediu mais leitos e mais testes para o vírus em Caxias.
Na ação, a promotoria ressaltou que, mesmo que o estado inaugurasse todos os leitos previstos, ainda assim haveria um grande déficit.

"O cálculo do déficit de leitos apresentado acima leva em conta uma previsão feita pela SES-RJ [a respeito da abertura de leitos], a qual não se tem qualquer garantia ou informação acerca da possibilidade de cumprimento. Sendo assim, uma certeza já temos: o déficit será bem maior, pelo menos durante o mês de maio", afirma o Ministério Público.

Calculadora epidêmica que prevê a pressão hospitalar por Covid-19, produzida pela UnB (Universidade de Brasília) em parceria com a OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde), indica que os leitos clínicos e intensivos para pacientes gerais se esgotarão em Caxias no fim do mês. No momento, estão livres para doentes Covid apenas dois leitos de UTI e 12 de enfermaria.

A promotoria também ressalta na ação que a alta taxa de letalidade no município indica que o número de casos está "extremamente subnotificado". Segundo estimativa do órgão, com base em fórmulas científicas, a cidade já teria mais de 17.000 casos da doença, apesar de ter identificado apenas 1,59% dos infectados.

De acordo com estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC-Rio, o percentual de notificação no estado está entre 10% e 12%. Portanto, em comparação, Caxias enfrenta um problema de subnotificação muito acentuado.

"Se há subnotificação de casos positivos, é porque a estratégia de testagem na população é falha e as Vigilâncias em Saúde do Estado e do Município não estão sendo capazes de implementar estratégias para minimizar o impacto da escassez de testes de diagnóstico", escreveu a promotoria.

A presidente do Sindicato dos Técnicos e Auxiliares de Enfermagem do município, Márcia Carvalho, relatou à reportagem que profissionais da saúde têm encontrado enormes dificuldades para ser testados. Segundo ela, são fornecidos testes rápidos, de menor precisão.

"Dá falso negativo. A pessoa continua passando mal, daí faz o teste PCR [mais preciso] e vê que está contaminado. E também não fazem o rastreamento dos pacientes atendidos por esses profissionais", afirma.

Em nota, a secretaria municipal de saúde de Caxias informou que recebeu 3.728 testes rápidos da secretaria estadual, para uso dos trabalhadores da saúde e da segurança pública na cidade. De acordo com o texto, os testes tiveram início no dia 8 de abril e 550 trabalhadores foram testados.

Enquanto o sistema de saúde está a beira do colapso, e a subnotificação atinge níveis graves, comércio e bares seguem abertos na cidade. A IDMJ (Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial), organização que trata da segurança pública na Baixada, recebeu relatos de que a milícia tem obrigado comerciantes a manter seus estabelecimentos abertos.

"Recebemos quatro denúncias de que milicianos passaram nos comércios centrais falando 'olha, fica aberto porque a gente vai ter que pegar a taxa'. E uma pessoa entrou em contato dizendo que os bailes funk, que são uma fonte de renda, foram reabertos nas áreas onde há uma parceria entre a facção TCP [Terceiro Comando Puro] e as milícias", relata Fransérgio Goulart, coordenador executivo da IDMJ.

Caxias é um dos municípios com presença mais forte dos grupos paramilitares, que estruturaram seu poder na região desde a década de 1990, a partir da eleição de vereadores citados por pesquisadores e políticos como matadores de aluguel.

"Caxias é um dos principais berços da milícia. Eles se fortaleceram basicamente com a venda de terrenos, mas avançaram em vários outros setores também. E o crescimento da venda ilegal de imóveis tem ocorrido sem o devido controle da Prefeitura [de Washington Reis]", diz o sociólogo e professor José Luiz Cláudio Alves, que estuda as milícias há mais de 20 anos.

"Uma das práticas é essa da cobrança de taxa dos comerciantes, numa cidade que tem um comércio forte. Isso desde o início [da disseminação do vírus] parecia algo que iria dar um grande problema", completa.

Nos últimos anos, as milícias expandiram seus tentáculos e passaram a cobrar, inclusive, por consultas em hospitais localizados nas áreas sob seu domínio. A prática acende um alerta para o que pode acontecer neste momento de pressão sobre a saúde.

"Com a estrutura sobrecarregada, pessoas morrendo nas filas, acredito que o acesso a exames e consultas médicas no sistema público será facilmente manipulado por essa estrutura de poder", diz José Cláudio.

O professor também afirma que o aumento da vulnerabilidade da população, diante da pandemia, pode fortalecer as milícias. "Não tem emprego, isso aprofundou a desigualdade. Eles podem usar essa crise para aprofundar os laços de clientelismo. Vão jogar a culpa no sistema de saúde, seguir o discurso bolsonarista e dizer que a doença veio para matar mesmo, que é lamentável, mas que a economia tem que continuar", afirma.

Caxias foi uma das cidades fluminenses que apresentou votação expressiva para o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 2018. No primeiro turno, ele levou 275 mil votos, ou 61%. No segundo, ganhou com quase 70%.

"A postura bolsonariana negacionista, de querer que as pessoas rompam com o isolamento, vai ter grande repercussão lá. E o prefeito tem um comportamento vinculado a essa percepção. Eleito por grupos evangélicos, ele em plena luta pelo distanciamento social foi a público manter abertas as igrejas."

Em nota, a prefeitura de Duque de Caxias afirmou que vem intensificando a fiscalização para cumprir o decreto municipal que proibiu o funcionamento do comércio não essencial na cidade. Segundo a administração da cidade, os fiscais da secretaria de Fazenda já notificaram mais de 200 lojistas. Os infratores estão sujeitos a multa por descumprir o decreto e poderão ter o alvará de funcionamento cassado.

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