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Cláudio de Mello Tavares se despede da presidência do TJ e faz balanço da sua gestão

Natural do Rio de Janeiro, Claudio de Mello Tavares tem 60 anos. Formou-se em bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes em 1985 e tornou-se juiz da I Câmara Cível do Tribunal de Alçada Cível em 1996. Em 1998, foi promovido, por merecimento, a desembargador. Nessa entrevista, ele conta suas ações à frente do TJ-RJ e o legado que deixa para Henrique Figueira

Qual o legado que fica da sua gestão? Qual a maior conquista?

Felizmente, deixo um legado. Primeiro, ter possibilitado a maior transformação digital que o Judiciário vivenciou nos últimos vinte anos e alcançado altos índices de produtividade num período tão conturbado como passamos no último ano.
Depois da aprovação do plano de carreira dos serventuários, que são o motor do Judiciário e, doravante, poderão se sentir mais estimulados a permanecer nos quadros do Tribunal de Justiça, a
maior conquista foi ter reduzido significativamente a taxa de congestionamento do Poder Judiciário Fluminense, além da possibilidade de introduzir uma nova visão de gestão.
Ficou claro que modernizar o Poder Judiciário não significa exclusivamente contratar novos servidores e magistrados no velho e conhecido círculo vicioso em que mais processos fazem reclamar por mais juízes, mais cargos, mais servidores e mais prédios, mas sim racionalizar os trabalhos com a realocação de servidores nas áreas mais carentes, a capacitação de pessoal, inclusive por meio da educação a distância, a simplificação de rotinas procedimentais nos cartórios e secretarias, com o propósito de alcançar a máxima eficiência operacional e a automatização do processo (redução máxima da interferência humana no processamento do feito eletrônico).
A tecnologia foi ferramenta indispensável nesse processo.

Quais as lições da experiência de presidir o TJ com uma pandemia global e o impeachment?

A mobilização global em torno da Covid-19 não terá implicações apenas na forma como organizamos nossos sistemas de saúde, mas também moldará a maneira como estruturamos a economia, a política, a cultura e, consequentemente, o próprio Poder Judiciário.
Difíceis escolhas estão sendo feitas, e devemos nos perguntar não apenas como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos quando a tempestade passar. Sim, a tempestade passará. A humanidade sobreviverá. Se Deus quiser, saberemos tirar as lições adequadas e, então, viveremos em um mundo diferente – disso não tenho dúvidas.
E, no Judiciário, esse novo panorama já começou a ser moldado. A Justiça brasileira passou, ao longo do último ano, pela maior transformação digital que se viu nos últimos tempos.
Até o início das medidas de isolamento social e domiciliar, a regra no Poder Judiciário sempre foi a presença física em seus Fóruns, sendo certo que somente excepcionalmente se admitiam audiências e sessões de julgamento por videoconferência, bem como o trabalho de juízes e servidores em regime de home office. Hoje, o que era exceção virou regra! Tivemos que nos adaptar, apreender a trabalhar de uma forma diferente, e o Judiciário não parou um minuto sequer neste período. Ao contrário, aumentamos nossa produtividade exponencialmente.
A lição aprendida é, na frase de Bertold Brecht, que “as revoluções se produzem nos becos sem saídas”. Estávamos às escuras no início da pandemia e realizamos uma verdadeira revolução para permitir a prestação jurisdicional de modo ininterrupto, mas, também, revolucionamos os serviços administrativos e a própria forma de votação da Alta Administração do Tribunal. Pela primeira vez na história do Tribunal, fizemos uma votação eletrônica não presencial e contamos, também pela primeira vez, com todos os desembargadores votando.
O processo de impeachment ficará marcado na história deste estado: foi a primeira vez que tivemos instalado um Tribunal Especial Misto para julgamento dogovernador do estado.
O impeachment foi comparado, na tradição anglo-saxã, a uma pesada peça de artilharia à disposição dos representantes do povo, e que, por isso, só pode ser usada em circunstâncias extraordinárias, como um remédio heroico, um remédio para situações desesperadas, próprio para ser empregado exatamente contra funcionários culpados por crimes políticos. Nas palavras do saudoso Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, o impeachment “é a arma do cidadão contra aquele que, tendo merecido a confiança para exercer um cargo público, age contra o interesse público, pondo em risco a existência das próprias instituições”.
A lição, em síntese, é que as instituições estão funcionando.

Qual é o papel do Judiciário para combater à corrupção que assolou o Rio?

Numa democracia, política é gênero de primeira necessidade. Não há alternativa a ela.
A vida pública vivida com integridade, idealismo e espírito público é uma das atividades mais nobres a que alguém pode se dedicar. Ajudar a traçar os rumos do país e do estado, escolher os caminhos do desenvolvimento, da justiça social e do avanço civilizatório é a missão sublime que toca aos agentes públicos eleitos. Uma vida que pode ser vivida com extraordinária grandeza.
Democracia não é o regime político do consenso, mas aquele em que o dissenso é legítimo, civilizado e absorvido institucionalmente. Quem pensa diferente de mim não é meu inimigo, mas parceiro na construção de uma sociedade aberta e de um mundo plural. É o lugar de construir o consenso a partir do dissenso.
A democracia tem lugar para conservadores, liberais e progressistas. Nela, só não há lugar para a intolerância, a desonestidade, a corrupção e a violência. Temos três décadas de estabilidade institucional, mas não sem dificuldades ou sem deixar de reconhecer um problema crônico que assolou o país nos últimos anos: a corrupção.
É impossível não identificar as dificuldades em superar a corrupção sistêmica como um dos pontos baixos destes últimos trinta anos de democracia no Brasil. O fenômeno vem em processo acumulativo de longa data e se disseminou, nos últimos tempos, em níveis espantosos e endêmicos. Aliás, uma autêntica e silenciosa pandemia.
Não foram falhas pontuais, individuais: foi um fenômeno generalizado, sistêmico e plural, que envolveu empresas estatais e privadas, agentes públicos e privados, partidos políticos, membros do Executivo e do Legislativo. Havia esquemas profissionais de arrecadação e distribuição de quantias desviadas mediante superfaturamento e outros métodos. Esse se tornou o modo natural de fazer negócios e política no país.
A corrupção é fruto de um pacto oligárquico celebrado entre boa parte da classe política, do empresariado e da burocracia governamental para saquear o Estado brasileiro.
O importante é que a sociedade deixou de aceitar o inaceitável. A reação da cidadania impulsionou mudanças importantes de atitude que alcançaram as instituições, a legislação e a jurisprudência. O Supremo Tribunal Federal foi capaz de interpretar esse sentimento e, junto com o Judiciário Nacional, possibilitou a mudança de cultura até então consolidada na nação.
Assim, a Justiça é peça de fundamental importância no combate à corrupção.

Crime de corrupção na pandemia deveria ser hediondo?

O sistema punitivo está longe de figurar no topo da lista dos instrumentos mais importantes para realizar o ideário constitucional. Não se muda o mundo com a exacerbação do Direito Penal. A construção de um país fundado em justiça, segurança e igualdade entre todos é mais bem servida por categorias como educação de qualidade, distribuição adequada de riquezas, poder e bem-estar e debate público democrático e de qualidade.
A verdade, porém, é que, no atual estágio da condição humana, o bem nem sempre consegue se impor por si próprio. A ética e o ideal de vida boa precisam também de um impulso externo. Entre nós, no entanto, um Direito Penal seletivo e absolutamente ineficiente em relação à criminalidade de colarinho-branco criou um país com severas distorções.
O sistema punitivo deixou de cumprir o seu papel principal: o de funcionar como prevenção geral, com o temor da punição servindo para inibir os comportamentos criminosos. As pessoas tomam decisões na vida com base em incentivos e riscos. Se há incentivos para a conduta ilícita – como o ganho fácil e farto – e não há grandes riscos de punição, a sociedade experimenta índices elevados de criminalidade. Assim, como ensina a professora Maria Cristina Pinotti, por ser a corrupção um crime racional, “é indispensável alterar a relação entre custo e benefício dessa prática, tanto para o corruptor como para o corrupto”. A reflexão legislativa é sempre bem-vinda.

Uma mensagem aos servidores do judiciário?

Nosso Tribunal é reconhecidamente o mais ágil e eficiente do país. É inestimável o serviço que magistrados e servidores prestam à população fluminense e à democracia brasileira. Agradeço a todos o brilhante trabalho desenvolvido silenciosamente, com muita dedicação, empenho e espírito público.

Qual a importância de termos na presidência do CNJ e do STF um carioca?

O Ministro Luiz Fux é um magistrado muito experiente e culto e passou por todos os graus de jurisdição. É um profundo conhecedor do sistema judiciário e do Direito. Não à toa, os primeiros meses de sua presidência à frente dessas duas instituições fundamentais têm sido profícuos, como seguramente o será todo o mandato. Que Deus o ilumine sempre.

Como chefe de um dos três poderes no estado, exatamente que experiência leva da relação com o Executivo e o Judiciário?

A Constituição traz uma lição perene: a relação entre os dois Poderes deve ser marcadamente harmônica, cordial e independente.

Uma reflexão: Cláudio pelo Cláudio?

Em algum lugar do futuro, a pandemia vai passar, vamos retomar nossas vidas e teremos de cuidar do nosso país. Compete a todos a reconstrução e a construção de novo normal, de nosso ideal de nação.
No livro “Por que as nações fracassam”, Daron Acemoglu e James A. Robinson procuram identificar as razões que levam países à prosperidade ou à pobreza. De acordo com os autores, essas razões não se encontram –ao menos em sua parcela mais relevante – na geografia, na cultura ou na ignorância de qual é a coisa certa a fazer. Elas residem, acima de tudo, na existência ou não de instituições econômicas e políticas verdadeiramente inclusivas. É possível que tudo que passamos nos últimos anos represente uma dessas conjunturas críticas que permitirão a reconstrução de muitas instituições e que ajudarão a empurrar para a margem da história toda a desigualdade existente neste belíssimo país. Temos a oportunidade de ouro de reconstruir a nação em novas frentes e novas bases, buscando, sem dúvida alguma, mais igualdade, integridade, oportunidades e bem-estar social.

Uma mensagem final para os nossos leitores.

Fé! Com fé, conseguimos alcançar tudo.

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