Diretor de fundo russo chama Anvisa de antiprofissional e mentirosa por barrar Sputnik V no Brasil

Dhiego Maia (Folhapress)

Kirill Dmitriev, diretor do fundo que financiou o desenvolvimento da vacina Sputnik V, classificou a rejeição à importação do imunizante russo contra a Covid-19 pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) como resultado de uma possível pressão política orquestrada pelos Estados Unidos para "não deixar a Sputnik entrar no país".

"A intervenção externa é um dos elementos-chave desse comportamento [da Anvisa]", disse Dmitriev sem, no entanto, dizer nomes de autoridades ou laboratórios concorrentes que estariam nestas operações.

Reportagem do jornal Folha de S.Paulo mostrou que o governo Trump pressionou o Brasil a recusar a vacina russa contra a Covid-19. A informação consta de um relatório publicado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos americano em 17 de janeiro, três dias antes da posse de Joe Biden.

"Isso faz parte da política. O que ela [Anvisa] vem pedindo de documentação para nós é bem maior e diferente do que ela pede para outros órgãos reguladores e produtores de vacinas", afirmou Dmitriev.

Dmitriev falou aos jornalistas em uma entrevista coletiva global realizada na manhã desta terça-feira (27), um dia após a decisão da Anvisa. O pedido de importação do imunizante russo havia sido feito por governadores de dez estados (Bahia, Acre, Rio Grande do Norte, Maranhão, Mato Grosso, Piauí, Ceará, Sergipe, Pernambuco e Rondônia).

O diretor do fundo russo também chamou a Anvisa de antiprofissional e mentirosa ao divulgar, segundo ele, informações falsas sobre a Sputnik. Ele afirma que a vacina já foi aceita em 62 países, com a inclusão de Bangladesh. "É muita injustiça e falta de profissionalismo da Anvisa lançar luz de incertezas contra o trabalho de outras 62 agências reguladoras que aprovaram a nossa vacina."

As agências regulatórias dos EUA (FDA) e da Europa (EMA), consideradas como referência para muitos países, também não aprovaram a Sputnik. Na análise do pedido de importação da vacina russa feita pelos governadores, os diretores e a equipe técnica da agência identificaram a ausência de dados mínimos e ressaltaram pontos críticos -como falhas no desenvolvimento que trazem incertezas sobre a segurança da vacina -para não autorizar o uso do imunizante.

"Um dos pontos críticos foi a presença de adenovírus replicante na vacina [que, por meio de modificação, não deveria se replicar]. É uma não conformidade grave", disse o gerente-geral de medicamentos da agência, Gustavo Mendes. Segundo ele, isso pode ter impactos na segurança da vacina.

"O que esperamos de uma vacina de adenovírus vetor é que não tenha vírus replicante. E essa especificação [da empresa produtora] de permitir essa presença não foi justificada", explica.

Segundo Mendes, o problema foi encontrado em todos os lotes apresentados da vacina para análise. Ao mesmo tempo, não foram apresentados estudos que garantissem a segurança nesse cenário.

"Nunca encontramos esse vírus replicante", disse Dmitriev ressaltando, ainda, que muitos dos comentários técnicos da agência de regulação brasileira sobre a Sputnik contradizem os documentos apresentados pelo Instituto Gamaleya, o fabricante da vacina russa. Um desses documentos versa sobre o sistema de controle na linha de produção.

"Temos os melhores sistemas de filtração de vacinas no mundo. Nossas análises apontam zero caso de trombose cerebral entre adultos que tomaram a Sputnik", afirmou. Denis Logunov, diretor de pesquisa científica do Gamaleya, reforçou: "não iríamos colocar no organismo humano um produto não purificado". Segundo Dmitriev, a Sputnik passa por quatro sistemas de filtração, o que a deixa com alto grau de pureza ao final do processo. Sobre a análise do adenovírus, Dmitriev também disse que a Anvisa "não solicitou dados sobre o assunto".

"Não acreditam no estado russo. Nosso ensaio clínico foi feito em cinco países, incluindo a Índia. Algumas vacinas aprovadas no Brasil [sem citar nomes] não receberam esse selo no mundo", afirmou o diretor aos jornalistas.

Para o diretor Alex Machado Campos, relator do parecer que negou o uso da Sputnik no Brasil, a falta de apresentação do relatório da agência russa pesou na decisão. "A Anvisa notificou todos os estados e abriu caminho para que outros documentos pudessem ser apresentados", disse ele, frisando que não houve resposta.

A análise dos dados obtidos pela Anvisa também mostrou problemas. "Foram observadas falhas de desenvolvimento do produto, que resultam em incertezas quanto à qualidade, segurança e eficácia da vacina, assim como foi verificado que os controles de qualidade são insuficientes", disse Campos.

A posição de Campos foi seguida pelos outros diretores, em reunião que durou mais de cinco horas na segunda-feira (26). O presidente da agência, Antonio Barra Torres, também salientou que há riscos inaceitáveis e graves à segurança a partir da análise.

Para Dmitriev, as alegações da Anvisa não fazem sentido diante da capilaridade alcançada pela Sputnik até agora e pelos resultados demonstrados por ela em periódicos científicos - dados publicados na revista Lancet apontaram eficácia de 91,6% para a vacina a partir de informações preliminares de estudo com 20 mil voluntários.

Mendes afirmou, porém, que a avaliação sanitária feita pela agência é diferente da realizada por revistas científicas. O gerente da Anvisa explicou que a análise dos estudos de avaliação de segurança, por exemplo, apontou sérias limitações, em especial no modelo de registro e monitoramento de eventos adversos. "A falta dessas informações impede que sejam identificadas possíveis reações adversas importantes que precisam constar em bula", afirmou.

A verificação do estudo de fase 3 -momento em que foi verificada a eficácia da vacina- também apontou "conclusões limitadas devido a falhas no desenho do estudo", aponta. Mendes disse que foram observadas ainda incertezas sobre a qualidade da vacina e o desenvolvimento das doses. Ficaram dúvidas, por exemplo, sobre se o produto feito em escala comercial é comparável ao usado em estudos clínicos e quais os impactos de mudanças no locais de fabricação.

"Percebemos também uma falha no controle de qualidade", disse. Um exemplo é a falta de informações sobre o controle de possíveis impurezas na vacina. "A empresa não demonstrou que controla de forma eficiente o processo para evitar outros vírus contaminantes", disse. "Tudo isso tem um potencial impacto na segurança das pessoas que forem vacinadas."

Diante da dificuldade de obter dados, a agência fez uma visita recente de inspeção à fábricas da vacina na Rússia. A equipe da gerência de fiscalização que foi ao país, porém, não teve a entrada autorizada em todas as plantas de produção, como o Instituto Gamaleya, nem teve acesso a dados suficientes para recomendar a aprovação.

A Rússia, segundo Dmitriev, continuará a manter contato com os governadores brasileiros interessados na compra da Sputnik V. "Desde o começo, eles nos procuraram querendo saber mais da vacina. Apesar da posição dos burocratas, continuaremos com o nosso trabalho."

O próprio Dmitriev afirma que dependerá da Anvisa para as tratativas de importação avançarem, o que ajudaria o país, segundo ele, a alavancar sua imunização contra a Covid-19. "Dezenas de milhões de brasileiros foram afetados com atrasos que não são uma atitude profissional e ética por pessoas que tentam barrar a vacina russa no Brasil."

A negativa da Anvisa contra a Sputnik V ocorre em um contexto marcado por pressão e intenso lobby político pela aprovação da vacina russa. O pedido de liberação vinha sendo reforçado por membros da União Química -que tem uma parceria com a Rússia-, parlamentares e governadores, que alegavam que a Sputnik já era usada em mais países.

Esse é segundo pedido excepcional de importação de vacinas contra a Covid negado pela agência. Antes da Sputnik, a agência negou pedido do Ministério da Saúde para a vacina Covaxin, da Índia, também alegando falta de dados mínimos.

A agência já aprovou outros cinco pedidos de uso emergencial ou registro de imunizantes contra a Covid. Estão na lista a Coronavac (Butantan e Sinovac), Covishield (produzida pela AstraZeneca por meio do Serum Institute, da Índia), Covishield (pela Fiocruz) e vacinas da Pfizer e da Janssen.

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PAÍSES E TERRITÓRIOS QUE ACEITAM USO DA SPUTNIK V

1) Rússia
2) Belarus
3) Argentina
4) Bolívia
5) Sérvia
6) Argélia
7) Palestina
8) Venezuela
9) Paraguai
10) Turcomenistão
11) Hungria
12) Emirados Árabes Unidos
13) Irã
14) República da Guiné
15) Tunísia
16) Armênia
17) México
18) Nicarágua
19) Bósnia-Herzegovina
20) Líbano
21) Mianmar
22) Paquistão
23) Mongólia
24) Bahrein
25) Montenegro
26) São Vicente e Granadinas
27) Cazaquistão
28) Uzbequistão
29) Gabão
30) San Marino
31) Gana
32) Síria
33) Quirguistão
34) Guiana
35) Egito
36) Honduras
37) Guatemala
38) Moldova
39) Eslováquia
40) Angola
41) República do Congo
42) Djibouti
43) Sri Lanka
44) Laos
45) Iraque
46) Macedônia do Norte
47) Quênia
48) Marrocos
49) Jordânia
50) Namíbia
51) Azerbaijão
52) Filipinas
53) Camarões
54) Seychelles
55) Ilhas Maurício
56) Vietnã
57) Antígua e Barbuda
58) Mali
59) Panamá
60) Índia
61) Nepal
62) Bangladesh

Fonte: Governo russo