Cinema | Parlatório à japonesa

Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã

Três histórias aparentemente autônomas sobre desejo, ambientada no Japão atual, fazem do drama “Wheel of Fortune and Fantasy” o mais forte candidato ao prêmio de melhor roteiro do 71º Festival de Berlim, que encerra hoje sua edição pocket de pandemia, consagrando o realizador Ryûsuke Hamaguchi como um dos principais nomes de seu país na direção de longas-metragens na atualidade.

Num país que consagrou Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu, Kenji Mizogushi, Nagisa Oshima, Shôhei Imamura, Hayao Miyazaki e Naomi Kawase, virar celebridade como cineasta é indício de talento, perseverança e de um projeto estético bem singular. Tudo isso se faz notar nos segmentos baseados em angústias femininas do longa em episódios que rendeu ao diretor de 42 anos uma vasta quilometragem de elogios no evento germânico, realizado on-line no site www.berlinale.de, com a promessa de uma segunda edição, esta presencial, em junho, para o povo da Alemanha. “Contar bem uma história demanda domar a nossa tendência a estetizar o que se narra e a buscar uma ideia de beleza que pode ser um convite ao supérfluo, àquilo que não é essencial”, disse Hamaguchi ao Correio da Manhã, em entrevista via Zoom, citando o americano John Cassavetes (1929-1989), ganhador do Urso de Ouro na Berlinale 1984, por “Amantes” (“Love Streams”), como sua principal referência. “Eu tinha 20 anos quando vi “Os Maridos’, um dos melhores filmes dele, e tive a sensação de estar saindo de uma representação da vida real mais vívida do que a própria realidade à minha volta. Cassavetes me ensinou que a matéria do cinema são pessoas, na maneira como estas conduzem suas inquietações”.

Indicado à Palma de Ouro de Cannes em 2018 com “Asako I & II” e laureado no Festival de Locarno, na Suíça, com “Happy Hour” (2015), Hamaguchi embatucou Berlim com “Wheel of Fortune and Fantasy” (“Guzen to sozo” no original nipônico) pelo lirismo de seus diálogos e pela acuidade como traduz a solidão. Há uma trinca de situações distintas no longa: a) uma jovem modelo fotográfica tenta estabelecer um triângulo amoroso com um quase casal; b) uma jovem cria uma armadilha afetiva para um arrogante professor ao ler um conto sexual para ele; c) uma moça lésbica esbarra com uma mulher na rua, que acredita ser uma velha amiga, e esta, mesmo sem ser a tal pessoa imaginada, aceita representar esse papel. São situações calcadas na arte da palavra, mas que revela muito sobre a opressão da mulher na sociedade japonesas, de ontem e de hoje.

“Atrizes e atores reagem às palavras de um roteiro com seus corpos. Se o texto não for bom, o diálogo vai soar artificial. E eu não poderia ter artificialismos numa dinâmica pautada em uma expressão das ansiedades femininas que foram trabalhadas não por mim, que sou homem, mas por elas, reagindo ao que escrevi de maneira livre”, explica Hamaguchi. “Desde o ensaio, o que eu busco com o elenco é soar natural”.

Cada um dos três hemisférios de “Wheel of Fortune and Fantasy” é assombrado pelo mesmo fantasma: a solidão. “Por ser uma ilha, por se pensar como uma ilha, o Japão não facilita muito o deslocamento das pessoas de região em região. Por vezes, algumas pessoas vivem eras a fio no mesmo lugar”, explica o cineasta. “Esse fixismo é uma sensação que dificulta comunicações e fomenta aparências. A ideia deste filme é driblar o que é aparente”.

Outros títulos se destacaram na corrida por prêmios desta Berlinale como “Next Door”, uma comédia dirigida por Daniel Brühl, ator teuto-espanhol de “Adeus, Lênin!” (2003) e “Rush: No Limite da Emoção” (2013). No longa, ele vive um astro que, prestes a rodar um filme de super-herói em Hollywood, é confrontado por um sujeito, em um bar, sobre a realidade alemã. O favoritismo ao Urso dourado, contudo, divide-se entre o romeno “Bad Luck Banging or Loony Porn”, de Radu Jude, e o libanês “Memory Box”, do casal Joana Hadjithomas e Khalil Joreige.