Cinema | Uma cineasta em chamas

Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã

Ao fazer um balanço do que houve de mais essencial no cinema de dezembro de 2019 ao mês 12 de 2020, numa reflexão retroativa, a Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ) escolheu “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (“Portrait de la jeune fille en feu”), da francesa Céline Sciamma, para ocupar o topo de sua lista de Melhores do Ano (passado). Ao lado dela, entraram outros nove títulos: “1917”, de Sam Mendes; “Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou”, de Bárbara Paz; “Destacamento Blood”, de Spike Lee; “Joias Brutas”, de Benny Safdie e Josh Safdie; “O Farol”, de Robert Eggers; “O Homem Invisível”, de Leigh Whannell; “O Som do Silêncio”, de Darius Marder; “Pacarrete”, de Allan Deberton; e “Soul”, de Pete Docter e Kemp Powers.

Revelada em 2007, com “Lírios d’Água”, sobre a educação afetiva de três adolescentes, “a” eleita da ACCRJ nasceu em 12 de novembro de 1978, em Pontoise, França. Sua consagração definitiva ocorreu há cerca de dois anos, com a história uma pintora do século XVIII (Noémie Merlant) incumbida de retratar uma jovem nobre (Adèle Haenel) forçada pela mãe a um casamento não desejado. Da pintura vai brotar uma paixão cúmplice. E libertadora.

Indicado ao Globo de Ouro, o longa vendeu 105 mil ingressos em sua arrancada nas bilheterias da França e arrecadou US$ 10 milhões planeta afora, de carona nas reflexões de Céline sobre as violências de gênero. É a marca dela, ainda que a doçura pareça ser seu principal atributo.

Dois anos depois da consagração de “Retrato da Rapariga em Chamas”, ganhador do prêmio de melhor roteiro em Cannes, ela refinou sua dramaturgia num novo filme, um dos mais elogiados da Berlinale 2021. Ela esteve na competição alemã com uma aula de delicadeza chamada “Petite Maman”, um daqueles filmes que só de olhar já dá para saber que será um sucesso estrondoso na França, e também fora dela, dada a sua habilidade em arrancar lágrimas da plateia. Só depende de os cinemas europeus reabrirem.

COM E SOBRE CRIANÇAS

Pequenininho (70 minutos), silencioso e sem gordurinhas, este drama é um filme com crianças e sobre as crianças que moram dentro de qualquer alma adulta. Logo, é um filme sobre rituais de passagem, sobre crescer. Só que o verbo doer é conjugado de maneira menos angustiante, e mais lúdica, quando fotografado com o realismo de Claire Mathon, a força da natureza que galvaniza a poética de Céline com uma luz sem um pingo de rebuscamento.

No tênue limiar entre as histórias para miúdos e os dramas de luto para gente grande, “Petite Maman” traça de uma maneira libertária as fronteiras entre aquilo que parece um facto e o que se supõe imaginação, numa maneira muito parecida ao do seu filme anterior. Em “Retrato da Rapariga em Chamas”, duas mulheres faziam do amor um refúgio onde todos os planos podiam ser, no mínimo, idealizados, mesmo com a (cons)ciência de que esbarrariam numa realidade crua. Numa certa medida, Laure, a protagonista de “Tomboy” (outro filme famoso de Céline, de 2011), fazia-se passar por Mickäel, acreditando piamente na identidade que escolheu ter, mesmo certa do peso da sua identidade social imposta no berço. Com Céline é sempre assim: há um instante onde o querer pode ser o poder. E o poder de “Petite Maman” é o do preenchimento de um vazio, da suspensão de uma saudade.

Aos 8 anos, Nelly (Joséphine Sanz) sabe que a sua mãe vai se afastar, para resolver alguns problemas, deixando ainda mais oca a casa de campo da sua avó, que acaba de morrer. Às vésperas de partir daquele mundo de matas verdes, ela conhece outra menina (Gabrielle Sanz), que, não por acaso, tem o mesmo nome da sua mãe: Marion. Ali começa um jogo de projeção que, por alguns minutos, leva-nos a nos sentirmos numa fábula, parecendo ser tudo inventado pela cabeça da protagonista. Mas, por vezes, tudo é de um realismo que dói. E arrebata, como tudo de Céline.