Até os progressistas querem a censura hoje, diz Pedro Bandeira ao fazer 80 anos

Por: Pedro Bandeira

Foi com uma metáfora sobre a censura que Pedro Bandeira escreveu um de seus maiores sucessos, "A Droga da Obediência", sobre um gênio do mal que cria uma droga capaz de reduzir a humanidade à obediência absoluta.

Já faz 38 anos que o romance chegou às livrarias. Seu enredo, no entanto, é mais atual do que nunca, diz Bandeira, que comemora seus 80 anos nesta quarta-feira como um dos escritores de literatura infantojuvenil mais lidos do país, com 130 livros publicados e 28 milhões de exemplares vendidos.

Ele explica. Afirma que, se de um lado a ministra Damares Alves diz que menino veste azul e menina veste rosa e o ex-prefeito do Rio de Janeiro tenha mandado recolher das prateleiras um quadrinho com um beijo gay, de outro há quem queira censurar livros com os de Monteiro Lobato, acusados de racismo, ou obrigar o uso do gênero neutro, e qualquer um que discorde deve ser cancelado.

"Não gosto muito de dizer que isso é de direita e aquilo é de esquerda, mas parece que pedir censura é progressista hoje. É engraçado. As pessoas que se dizem progressistas ou liberais adoram censura", diz, numa entrevista em que revisita o Brasil do passado, ataca o atual, sob a gestão de Jair Bolsonaro, mas se diz esperançoso para o futuro.
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PERGUNTA - O senhor virou até 'tiktoker' na pandemia. De onde veio a ideia?

PEDRO BANDEIRA - Apesar de ser muito moço, eu não lidava bem com essas novidades. Quando a Saraiva e a Cultura faliram e as escolas fecharam, as vendas de livros caíram muito. Não adiantava ficar sentado chorando e esperar o governo agir, então, com ajuda do meu filho, resolvi entrar nas redes sociais. Dá trabalho, mas é agradável, porque posso manter contato com os leitores, que não mandam mais cartas, e opinar sobre muitas coisas, como a guerra e a volta às aulas.

P - Por falar em volta às aulas, uma pesquisa do IBGE apontou que 41% das crianças brasileiras entre sete e oito anos não sabem ler e escrever. Em 2012, eram 28%. Por que os estudantes têm mais dificuldade para aprender hoje?

PB - A educação jamais foi prioridade no Brasil, mas regredimos. O ministro da Educação, Milton Ribeiro, diz que criança tem que sentir dor para aprender. Já não tem mais general para pôr, então estão colocando coronel, tenente, capitão. Isso nos prejudica, porque os professores são treinados para perseguir os alunos, dizer que eles são fracos porque são preguiçosos, sem considerar a vida miserável que muitas crianças têm. Isso vem de longe. Foi um trabalho de gerações que fez o Brasil ser analfabeto. A elite trabalhou duro para que a gente fosse atrasado.

P. - Mas regredimos, o senhor disse.

PB - O Brasil não voltou atrás. Voltar atrás é eleger Collor, Jânio Quadros. Fomos além. Provamos que o poço tinha um fundo muito maior até chegar no lodo. E a chance de reeleição do cara [Bolsonaro] é muito forte. O povo alemão, cultérrimo, aplaudia aquele bigodudo psicótico. No Brasil, parece que tudo estava resolvido e que ia voltar o outro [Lula], mas agora parece que não. Ele [Bolsonaro] sabe manipular.

P. - Entre tantos problemas, qual mais te preocupa?

PB - O racismo. Temos a política de cotas, que é muito boa, mas temos que lutar mais.

P. - Monteiro Lobato, que o senhor diz ter como um pai, é acusado de racismo por ter escrito Emília chamando tia Nastácia de "negra beiçuda".

PB - Lobato era um racista miserável. Ele era filho de donos de escravos. Mas o cara escrevia bem demais. Ele é o berço da literatura infantil brasileira. Eu comecei por ele. Todo mundo era racista naquela época. Achavam que pretos eram inferiores, como se fossem cachorrinhos. Mas quem bate num cachorrinho? Ninguém xingava negros desse jeito. Ele errou ao escrever a Emília. Seria muito mais interessante se ela falasse coisas engraçadas, bobagenzinhas, como qualquer criança.

P. - E o que devemos fazer, então?

PB - Vamos proibir? Devemos proibir "Minha Luta"? Ou publicar "Minha Luta com Explicações"? Ora, deixa só "Minha Luta". Tem muitos estudiosos que querem ler. Deixa lá. Faz parte da história.

P. - O que o senhor pensa, a propósito, sobre a cultura do cancelamento?

PB - Não gosto muito de dizer que isso é de direita e aquilo é de esquerda, mas parece que pedir censura é progressista hoje. É engraçado. As pessoas que se dizem progressistas ou liberais adoram censura. Eu te faço uma pergunta. Uma pessoa que defende a escravidão deveria ser censurada, não deveria?

P. - O senhor, inclusive, já disse muitas vezes que não é politicamente correto.

PB - O mais chato do politicamente correto é quando tentam mexer na linguagem. A escola tem que ensinar a língua que está no dicionário e na gramática. Um personagem caipira pode falar errado, mas o narrador tem que usar a gramática tal como ela é. Agora querem criar um gênero que não existe.

P. - A língua não binária está sendo incorporada por livros, filmes, séries e até por novelas da Globo.

PB - Você acha que vai pegar? É impossível. É uma invenção burra. Tem muita palavra terminada em "e" que não tem nada a ver com neutralidade de gênero. É uma besteira. Se se ofenderem, peço desculpas. Eu não quis ofender, mas não vou usar o gênero neutro e a academia não vai instituí-lo.

P. - O senhor pretende entrar para a Academia Brasileira de Letras?

PB - Não quero entrar nem para academia de sambistas. Tenho vários amigos lá, como o Ignácio de Loyola Brandão, a Ana Maria Machado. São pessoas que querem fazer movimentos e usar o prestígio da Academia para isso -e tudo bem, mas eu não quero. Se me convidarem, vou dizer educadamente que estou com um problema de vesícula e não dá, sabe? Minha vesícula não permite.

P - O senhor, que teve seu trabalho censurado na ditadura, vê algum paralelo entre o cancelamento, ou seja, o que o senhor chama de censura de hoje e a do passado?

PB - Não é a mesma coisa porque os canceladores não têm poder. Mas é engraçado, porque não precisa censurar o que as crianças veem no streaming. Pode ver até filme pornô que não faz mal. Mas se puser uma coisinha num livro vira alvoroço. O livro parece ser perigoso. Alguma coisa andou dando certo para o nosso lado, por isso a reação é tão forte. É um sinal de que as coisas vão melhorar.

P. - Será? Há dois anos, houve censura na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, quando o ex-prefeito mandou tirar das prateleiras uma HQ com um beijo gay.

PB - Eu estava lá. Foi a coisa mais idiota do mundo. Tadinhos dos policiais. Mandaram eles para lá, mas eles não sabiam o que fazer. Foi cômico. Isso mostra que, com a modernidade, não poderia acontecer [uma ditadura como a de] 1964 hoje. Vai censurar livros? Você lê o que quiser na internet.

P. - As listas de livros mais vendidos têm muitas histórias protagonizadas por LGBTs. É função das histórias infantis abordarem sexualidade também?

PB - É função dos escritores escreverem o que eles acham que devem escrever. O livro tem que ser um espelho que a criança abre e se vê -e tem que existir espelho para todo mundo. Uma vez recebi uma carta de uma menina com uma bronca, porque a Isabel, de "A Marca de uma Lágrima", não era negra. Ela era negra e nunca se via nas histórias. Até hoje choro quando lembro disso.

P. - O senhor pretende, então, criar personagens LGBTs?

PB - Precisamos que eles mesmos escrevam. Se eu escrever, seria falso, porque não posso escrever sobre o que não entendo. Tento muito escrever sobre meninas, mas é uma dificuldade enorme, porque nunca fui menina. Como vou ser o baluarte da defesa dos meninos gays?

P - Depois de mais de 130 livros, o que o senhor ainda quer escrever?

PB - Estou escrevendo bastante para crianças menores. Mas amo "Dom Casmurro" e cismo que a Capitu não deu para o Escobar. É fofoca do Zé Dias. Estou tentando fazer com que Sherlock Holmes investigue isso. Ele, que sabe de tudo, também deve saber português, ter lido "Dom Casmurro" e achar que o livro merece uma investigação em busca de pistas que provem ou não a traição de Capitu.

P. - O senhor vive de livros. Isso quebra a ideia de que o brasileiro não lê?

PB - O brasileiro que sabe ler lê muito. O problema é que ele não sabe ler. A escola não permite que ele aprenda. Muitos brasileiros são semianalfabetos e têm dificuldade até para assistir a uma novela de TV. O problema não é só econômico. O tênis é caro e se sacrificam para comprar um tênis de grife. O problema é que o Brasil deu certo como um país subdesenvolvido, então é muito importante que o povo não seja culto, porque é muito fácil dominá-lo. Quem está no poder precisa que o Brasil continue na merda. Mas as professoras estão sabotando esta ideia. Elas estão criando gente que sabe ler. Elas são perigosas. Talvez eu não veja grandes mudanças, mas gosto de viver de esperança. Só me resta esperançar.