Militares do Sudão dizem que golpe foi dado por receio de guerra civil

Um dia após um golpe militar no Sudão interromper um processo de transição para a democracia, as primeiras tentativas de justificar a tomada do Estado começaram a ser dadas. O general Abdel Fattah al-Burhan, 61, afirmou que a força militar retirou o gabinete civil de cena para evitar uma guerra no país da África Oriental.
Principal figura do Exército sudanês, Burhan chefiava o Conselho Soberano, órgão criado em 2019 e composto por 11 membros -seis civis e cinco militares- para guiar o país até eleições gerais. Nesta segunda-feira (25), porém, o conselho foi dissolvido, segundo o próprio general disse em pronunciamento, para que somente militares comandassem o Sudão.

Burhan justificou o temor de caos social com as cenas observadas nas ruas do país ao longo da última semana, quando milhares se manifestaram em favor da transição democrática e contra uma possível continuidade do poder militar. "Os perigos testemunhados na semana passada poderiam ter levado o país à guerra civil", disse ele nesta terça (26).

O general forneceu ainda a localização do premiê Abdallah Hamdok, 65, que havia sido levado pela força militar para um local desconhecido, assim como outros membros do gabinete de transição. Hamdok está na casa de Burhan. "O primeiro-ministro estava em sua casa. No entanto, estávamos com medo de que ele estivesse em perigo, então o levamos para a minha casa."

O escritório do premiê não comentou sobre a localização inusitada, mas defendeu, em uma rede social, que Hamdok segue sendo a "autoridade executiva reconhecida pelo povo sudanês e pelo mundo". "Não há alternativa senão as ruas, as greves e a desobediência civil até que as conquistas da revolução sudanesa voltem", dizia a mensagem.

O general Burhan afirmou que um novo gabinete de transição, criado à mesma época do Conselho Soberano, será formado, mas que não contará com "políticos tradicionais". Enquanto o gabinete deveria cuidar de políticas públicas, leis e diplomacia, o conselho atuava provisoriamente como chefe de Estado do país -comandando, por exemplo, as Forças Armadas.

Inicialmente chefiado por militares, o conselho deveria passar para as mãos de civis após 21 meses, segundo acordado na Carta Constitucional assinada em agosto de 2019. Os militares, no entanto, vinham sinalizando que não pertenciam abrir mão da chefia, o que se concretizou com a dissolução do órgão após o golpe.

A onda de protestos que tomou as ruas da capital Cartum na segunda se manteve nesta terça. Segundo relatos da agência de notícias AFP, as principais palavras de ordem das manifestações acusavam o general Burhan de ter "traído a revolução" de 2019, quando ditador Omar al-Bashir, no poder por três décadas, foi destituído. O episódio foi o estopim do processo de transição para a democracia, que depois seria institucionalizado com ajuda internacional.

Mesmo que agora saibam onde está o premiê, "não sairemos das ruas até que o governo civil se restabeleça", disse à AFP Hocham al Amin, 32, um engenheiro. Depois da malsucedida cooperação entre militares e civis, "nunca voltaremos a aceitar uma aliança com o exército".

Durante o pronunciamento, Burhan negou que a prisão do premiê e de diversos políticos, além da dissolução de órgãos acordados, seja um golpe. "Queríamos apenas corrigir o curso para uma transição. Havíamos prometido [isso] ao povo do Sudão e ao mundo inteiro", disse o general, que prometeu eleições gerais em julho de 2023.

O acesso a internet no país segue bloqueado, segundo monitoramento do NetBlocks, organização que acompanha a internet livre pelo mundo. Houve uma restauração temporária após 35 horas de interrupção, o que fez com que usuários pudessem publicar imagens e vídeos das manifestações, mas o acesso voltou a estar indisponível.

A autoridade de aviação civil sudanesa anunciou a suspensão de todos os voos no aeroporto internacional de Cartum até sábado (30). O espaço aéreo segue aberto para voos passageiros, mas a entrada e saída de pessoas pelo local foi suspensa devido aos atuais acontecimentos, explicou o diretor Ibrahim Adlan à agência de notícias Reuters.

Embaixadores do Sudão em 12 países, entre eles Estados Unidos, China, França e Emirados Árabes Unidos, rejeitaram a tomada militar e disseram, em comunicado, que "estão do lado da resistência do povo ao golpe".

Embaixadores sudaneses em 12 países, incluindo Estados Unidos, Emirados Árabes Unidos, China e França, rejeitaram a tomada militar de segunda-feira, disse uma fonte diplomática.
A tomada do poder pelos militares foi descrita por analistas como algo previsível não apenas porque figuras como Burhan vinham sinalizando a intenção de não entregar o comando para civis, mas porque representa um já esperado apego dessas figuras ao poder.

Desde que o Sudão se tornou independente da Inglaterra e do Egito, em 1956, foram cerca de 52 anos sob o jugo de governos militares, segundo informações dadas pelo pesquisador Jonas Horner, do think tank International Crisis Group, para a agência AFP.

"O golpe parece uma tentativa das forças de segurança de manter o controle de seus interesses econômicos e políticos, e de resistir à mudança para um regime civil", diz Horner.

O Exército sudanês comanda lucrativas empresas no país, em setores como agricultura e infraestrutura. Em 2020, o premiê Hamdok disse que 80% dos recursos públicos estavam fora do controle do Ministério das Finanças, mas não especificou qual parcela é controlada pelos militares.