Homem de 26 anos é morto em repressão a protestos antigolpe em Mianmar

Folhapress


Um manifestante foi morto nesta sexta-feira (5) em Mianmar, em mais um jornada de protestos contra o golpe militar que pôs fim à transição democrática no país.
A morte ocorre no dia em que o Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) deve se reunir a portas fechadas em Nova York para tentar encontrar uma solução à crise que se agrava no país asiático.

Manifestantes montam barricadas com foto do comandante do Exército em Rangoon, em Mianmar AFP ** Centenas de manifestantes fizeram um protestos pelas ruas de Mandalay, a segunda maior cidade do país, e um homem de 26 anos que ajudava nas barricadas erguidas para desacelerar o avanço das forças de segurança morreu após ser baleado no pescoço, disseram equipes médicas à agência de notícias AFP.

Em Rangoon, a capital econômica do país, o distrito de San Chaung foi, como nos dias anteriores, palco de enfrentamentos, com a polícia disparando balas de borracha e bombas de efeito moral, e os manifestantes se protegendo atrás de barricadas improvisadas construídas com pneus velhos, sacos de areia e arame farpado. As multidões também se reuniram em cidades como Pathein e Bago e no centro de Myingyan. Os grupos saíram em passeata com os três dedos erguidos –uma alusão à saga "Jogos Vorazes"–, com cartazes que diziam "não aceitaremos o golpe militar".

Também nesta sexta, as forças de segurança indianas aumentaram as patrulhas na fronteira com Mianmar para impedir a entrada de refugiados. "No momento, não estamos permitindo que ninguém entre", disse à agências de notícias Reuters Maria Zuali, integrante do governo indiano no distrito de Champhai.

No distrito de Serchhip, outro funcionário do governo disse que oito pessoas, incluindo uma mulher e uma criança, haviam cruzado a fronteira e estavam sendo atendidas. As autoridades estavam se preparando para abrigar entre 30 e 40 pessoas, segundo ele. Cerca de 30 policiais de baixa patente de Mianmar também cruzaram a fronteira nos últimos dias, segundo um policial indiano que não quis se identificar. "Eles alegaram que há violações dos direitos humanos e que foram convidados a atirar em civis", disse o oficial. Os agentes tentam escapar por não querer obedecer às ordens do novo governo militar para reprimir as manifestações contra o golpe. O ministério das Relações Exteriores da Índia disse que está apurando a situação dos policiais.

Nova Déli tem laços estreitos com os militares dos país vizinho –os mianmarenses montaram operações na fronteira para expulsar insurgentes a pedido dos indianos, que, em troca, presentearam Mianmar com seu primeiro submarino no ano passado. Na quarta (3), o país registrou o dia mais sangrento de repressão nas ruas, com pelo menos 38 pessoas mortas e dezenas de feridos depois que a polícia abriu fogo contra manifestantes. Desde a tomada do poder, em 1º de fevereiro, já foram mortas ao menos 55 pessoas.

A junta militar tem tentado evitar a publicação de informações sobre a repressão e, para isso, intensificou os cortes de internet e baniu o Facebook, a rede mais popular no país.
Mas vídeos e imagens vazam diariamente, e o próprio governo sofreu banimento nesta sexta, quando o YouTube anunciou que havia fechado vários canais militares. Muitas partes do país também sofreram cortes de energia nesta sexta-feira, embora não esteja claro se essa foi uma medida deliberada, já que o país tem infraestrutura pouco confiável. Diversas agências governamentais atribuíram as interrupções a uma "falha do sistema".

A chefe de direitos humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), Michelle Bachelet, exigiu que as forças de segurança parassem o que ela chamou de "repressão cruel contra manifestantes pacíficos". Bachelet disse que mais de 1.700 pessoas foram presas, incluindo 29 jornalistas. O investigador de direitos humanos da entidade em Mianmar, Thomas Andrews, pediu ao Conselho de Segurança imponha um embargo global de armas e direcione sanções econômicas à junta.

Os Estados Unidos disseram à China que esperam que o país asiático desempenhe um papel construtivo –Pequim se recusou a condenar o golpe e disse que a estabilidade da região é uma prioridade. Outra tradicional aliada do Exército mianmarense, a Rússia também não condenou o golpe e a repressão e trata o caso como "assunto interno" do país. A junta militar destituiu o embaixador do país na ONU, Kyaw Moe Tun, que, um dia antes, havia defendido o fim do golpe militar e solicitado "a ação enérgica da comunidade internacional para terminar com a opressão da população inocente e devolver o poder ao povo".

Os militares, que governaram diretamente por quase 50 anos até embarcarem em uma transição provisória para a democracia há uma década, têm se esforçado para impor sua autoridade. Eles tomaram o poder em fevereiro sob liderança do general Min Aung Hlaing e sob a justificativa de fraude nas eleições de novembro.

O partido da líder civil Aung San Suu Kyi, conselheira de Estado e premiada com o Nobel da Paz, venceu o pleito com ampla maioria. Ao assumirem, os militares declararam um estado de emergência com duração prevista de um ano. O próprio Hlaing, entretanto, afirmou que pode continuar no poder após esse período para coordenar a realização de um novo pleito. A junta prometeu realizar novas eleições em uma data não especificada, mas os ativistas rejeitaram e exigem a libertação de Suu Kyi.

Suu Kyi foi detida durante a tomada de poder junto com as principais lideranças de seu partido, a Liga Nacional pela Democracia (LND). Ela agora enfrenta quatro acusações criminais. As duas primeiras, apresentadas ainda na semana do golpe, foram de importação ilegal de seis walkie-talkies e de uma suposta violação dos protocolos de combate à propagação do coronavírus.

Nesta semana, a conselheira recebeu mais duas acusações: uma por ter supostamente violado uma lei de telecomunicações que estipula licenças para equipamentos, e outra por publicar informações que podem "causar medo ou alarme", prática vetada pelo código penal que data do período colonial. A LND obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento nas últimas eleições em Mianmar, realizadas em novembro do ano passado. A legenda, entretanto, foi impedida de assumir quando o golpe foi aplicado no dia da posse da nova legislatura. O Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, obteve apenas 33 cadeiras.

CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR

1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente
1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar
1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência
1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais
1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder
1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz
1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições
2008: Assembleia aprova nova Constituição
2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido
2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento
2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro
2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência
2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar
2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado