Cinema | Gol da Romênia na Berlinale

Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã


Mais desconcertante e inventivo dos nove longas-metragens já apresentados entre os 15 concorrentes ao Urso de Ouro já exibidos pelo 71º Festival de Berlim, que termina nesta sexta, “Bad Luck Banging or Loony Porn” (“Babardeala cu bucluc sau porno balamuc”) é mais uma comprovação de que a criatividade e a ousadia da Romênia, nas telas, não tem fim, sobretudo ao fazer da pandemia da covid-19 parte de sua narrativa.

Hilário do começo ao fim, mesmo quando sua câmera está apenas a observar o vaivém das ruas, seguindo sua protagonista, a professora Emi (Katia Pascariu), esse conto moral dirigido por Radu Jude (de “A Nação Morta”) já incorpora as máscaras de proteção ao coronavírus entre seus personagens, datando sua narrativa ao surto pandêmico do presente. A partir da histeria que se vive hoje, em meio aos confinamentos, a comédia de Jude acompanha, em três atos distintos, a história do ataque a Emi depois que uma gravação dela fazendo amor com seu marido vaza na internet.

A primeira parte é a reação dela às acusações e o impacto dessas em seu dia a dia. A segunda (e genial) parte é uma livre (e põe livre nisso!) montagem de cenas com conexões eróticas e políticas, tiradas de arquivos. E a parte final, mais teatralizada, é o julgamento dela. Em cartaz na MUBI (um dos streamings que mais crescem em popularidade na web hoje) com “Uppercase Print” (2020), Jude define seu trabalho mais recente como uma seleção de esquetes. Seleção essa que ataca a hipocrisia nossa de cada dia e a cultura online do ódio.
“Não tenho nada contra o ódio, mas é perigoso encorajá-lo, até porque a agressividade se espalha mais rápido nas redes sociais do que na vida real. E quando a agressividade cresce, a solidariedade cai. Muitos intelectuais conservadores insistem em dizer que não vivemos um momento de fascismo no mundo, mas líderes fascistas estão aí”, disse Jude ao Correio da Manhã, colecionando elogios a uma comédia que desponta como favorita da Berlinale.

CURADORIA POTENTE

Iniciado na segunda, o evento este ano teve que encolher sua seleção de filmes, o que não significa encolher a potência de sua curadoria, como se comprova em joias como “Memory Box”, de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (Líbano) e “Next Door”, a estreia do ator teuto-espanhol Daniel Brühl (de “Adeus, Lênin!”) como realizador. Ambos têm chance de saírem da competição bem premiados. O Brasil conseguiu holofotes (e aplausos) ao debater a luta diária de suas populações indígenas no .doc “A Última Floresta”, de Luiz Bolognesi. Mas nada fez mais barulho do que “Bad Luck Banging or Loony Porn”, dada a maneira inusitada como seu diretor retrata o quão hipócrita a Europa – e não só ela – é em relação ao sexo.
“Cansei de ver filmes na TV em que os programadores cortavam cenas onde víamos seios nus ou bumbuns de fora. Mas, lá fora, nas ruas da Romênia, no mercado negro, cobrava-se caro por um VHS com filmes eróticos. É a hipocrisia que nos cerca”, diz Radu, que ataca a ditadura do “roteiro” nas narrativas.

“O cinema hoje dá cada vez menos valor à liberdade, de modo que tudo num filme precisa ser previamente escrito, de modo formulaico. A terceira parte de ‘Bad Luck...’, por seguir uma linha mais narrativa, com as consequências da história da professora, precisava ter mais elementos escritos até para que nós pudéssemos improvisar. Mas, no geral, tento fugir das amarras. A segunda parte, por exemplo, foi a mais caótica, baseada em cenas de arquivo que eu fui buscando e que se relacionassem com a trama. E dali veio sua força. Os diretores temem o caos, mas é dele que nasce a vitalidade”.

Desde 2005, quando “A Morte do Sr. Lazarescu”, de Cristi Puiu, brilhou em Cannes, a chamada Primavera Romena se impôs como o mais sólido movimento estético do cinema no século XXI, com ataques ao moralismo “Eu sou pai de duas crianças. Ao frequentar uma reunião de escola, eu percebo as brutalidades que a vida produz”, diz Radu. “Meu cinema está atento a elas”.