Mobilidade urbana em uma população estagnada

Francisco Guarisa*

Esse tema tem promovido diversas discussões e pesquisas em função da pandemia da Covid-19, especialmente quando falamos em uso dos modos de transporte e as novas relações de trabalho. Uma primeira constatação é que essa situação evidenciou a fragilidade da infraestrutura de transporte ao redor do país e a necessidade de um novo olhar sobre o setor, especialmente pelo poder público.

Hoje, ao redor do mundo, podemos encontrar diversas cidades que já estão se preparando para ampliar suas áreas de ciclovia, de pedestres e promovendo fóruns de discussão sobre a melhoria na oferta dos transportes, especialmente em um conceito multimodal.

O momento exige uma urgência em encontrar soluções equânimes para essa situação, tanto no curto como no longo prazo. O problema é que no Brasil essa discussão se torna mais complexa. De um lado temos as pessoas com uma melhor condição socioeconômica, que por questões de segurança sanitária privilegiam formas individuais de transporte. Contudo, temos uma outra parcela da população, que não possui esta mesma condição e necessita utilizar diariamente o transporte coletivo com toda a sua precariedade.

É importante lembrar que este é um tema com o qual já convivíamos há tempos com um relativo stress diário, provocado pelos congestionamentos frequentes, pela má qualidade dos transportes coletivos e principalmente pela falta de planejamento urbano, que acabou concentrando as empresas nos grandes centros urbanos e uma parcela significativa da população na periferia.

Um grande receio é de que, em uma situação pós-pandemia, boa parte da população continue a evitar o transporte público e priorize o transporte individual, visando a continuidade de sua segurança ligada à saúde. Certamente, tal decisão contribuirá para um desequilíbrio em qualquer planejamento urbano relativo ao transporte multimodal, que sempre foi uma fragilidade, especialmente nas capitais do país. Caso este tema específico não seja tratado com sua devida importância, continuaremos a conviver com todas as externalidades negativas que há décadas fazem parte do nosso dia a dia: poluição ambiental, violência no trânsito, enormes congestionamentos, gastos excessivos de energia entre diversas outras.

Infelizmente, historicamente, nosso país sempre privilegiou o transporte individual. Abertura de rodovias, sucateamento do transporte ferroviário, incentivo às montadoras por meio da redução de impostos para implantação de fábricas e facilidades de créditos para aquisição de veículos, são alguns fatos que embasam esta afirmação. E os números não mentem: saímos de uma frota de automóveis de aproximadamente 36 milhões em 2003 para 100 milhões em 2019. Desta forma, podemos inferir que o investimento realizado em infraestrutura voltada ao transporte público dificilmente se equiparará ao que foi investido no transporte individual. Empresas, governos e toda a sociedade civil organizada precisarão estar unidos e discutirem proativamente sobre esta situação, não só sob o ponto de vista sanitário, mas principalmente em relação aos impactos socioeconômicos e ambientais.

Apesar de haver um consenso na mídia atual de que estamos diante de um grande problema, sob a minha ótica, vejo esta situação como uma grande oportunidade. Um estudo recente do WRI (World Resources Institute), instituição global de pesquisa que está no Brasil e em mais de 50 países, mostra dados alarmantes sobre a queda dos números de passageiros em transportes coletivos, provocada pelo isolamento social. Porém, ele também evidencia que é possível repensarmos o modelo atual e promovermos mudanças significativas por meio de um novo planejamento urbano estratégico e tático. O estudo sugere a criação de novas fontes de financiamento para o transporte coletivo e o uso de big data para o planejamento e controle, facilitando a gestão única dessa mobilidade, especialmente nas grandes metrópoles. Se o poder público, em todos os níveis – municipal, estadual e federal – concentrar esforços no sentido de estabelecer parcerias com uma proposta integradora, uma boa estrutura de governança e diálogo frequente com a sociedade, acredito que minimizarmos os impactos ocasionados por esta pandemia.

Torço para que em breve possamos entrar em uma nova era, onde o transporte público de qualidade prevaleça e a mobilidade urbana seja mais inclusiva, sustentável e tecnologicamente integrada. Uma era em que prevaleça a consciência humana, até porque o que efetivamente move o mundo somos nós.

 

*Consultor e Executivo de Marketing e Gestão