Não deixem de tocar Raul

O baiano Raul Seixas foi um dos mais importantes músicos brasileiros do século passado – o que é uma baita referência na terra de Noel, Villa-Lobos, Jobim e tantos outros. Por aqui, ninguém encarnou tão profundamente o velho e bom rock, seja no palco, seja na própria vida. Se alguém duvida, que leia “Não diga que a canção está perdida”, do jornalista Jotabê Medeiros (Ed. Todavia, R$ 69,90). Lindo livro.

É uma biografia escrita por um fã do seu personagem. Não há mal nisso, pois Jotabê teve habilidade suficiente para não fazer um livro chapa-branca, daqueles que levam o biografado às alturas do paraíso sem qualquer vergonha. Jotabê é fã, mas é também crítico o bastante para deixar claro que Raul era um gênio do estilo vacilão. Acontece. E muito.

Maluco beleza

Raul nasceu em Salvador, 1945. O talento para a música ficou evidente desde garoto. Adolescente no fim dos anos 1950, pirou nos reis Elvis Presley, Beatles, Chuck Berry etc etc. Mas é claro que o baiano não poderia ficar alheio aos ritmos do Nordeste, e haja influência: é baião, é a marcação da zabumba, é repente, tudo quanto é som e fúria nordestina, é Jackson do Pandeiro e sobretudo Deus, que também atende pelo nome de Luiz Gonzaga.

Raul mamou em todas essas fontes de pura musicalidade. Harmonias sem mistérios, ritmos marcantes, melodias à toda prova. Foi nesse liquidificador que ele bateu seu estilo, adicionando generosas pitadas de poesia, humor, lirismo, crítica de comportamento, misticismo, passado, presente, futuro. Tudo ao mesmo tempo agora.

Não poderia dar errado – como, a rigor, não deu, tanto que a obra continua em alta e, o que é pior, bastante atual.

Com suas reflexões esotéricas, Raul intuiu que haveria possibilidade de um mundo menos idiota. Suas letras tratam disso desde sempre, e o livro de Jotabê é riquíssimo para nos lembrar ou apresentar essas mensagens nos seus rocks, baladas e que tais.

São deliciosas as histórias por trás de criações como “Gita”, “Eu nasci há dez mil anos atrás”, “Metaformose ambulante”, “Mosca na sopa” e outras tantas que resistem e continuarão no coração do brasileiro - quer queira, quer não.

Além dos tempos iniciais, com a banda adolescente e as aventuras no Rio antes da fama, também vale muito conhecer a ligação com seu parceiro Paulo Coelho, um letrista sob medida para a mensagem que Raul queria passar adiante. Eram quase almas gêmeas - até que um dia o baiano pisou na bola e deixou o hoje escritor em maus lençóis com polícia da ditadura. Detalhes, no livro.

No fim das contas, parece que o baiano brilhante só falhou na administração do seu espírito irrequieto e curioso, insatisfeito e provocador, num corpo mirrado, fraco – que até aguentou demais da conta os abusos. Raul era isto: sexo, drogas e rock ‘n’ roll.

À parte questões de juízo, que não vêm ao caso, Raul viveu como quis. Caiu nas tentações, aproveitou o que conseguiu, deixou um legado admirável.

Seus últimos tempos de estrada foram marcantes. Resgatado do ostracismo, doente e banguela, pelo fã e parceiro Marcelo Nova, alimentaram- -no ao mesmo tempo que esgotaram suas energias.

Em 1989, depois de extensa maratona de shows, Raul foi encontrado morto, em sua casa. Tinha 44 anos. Teve merecido enterro de pop star, aclamado pelos artistas e amigos, claro, mas sobretudo por fãs de origem humilde, que identificavam na figura descabelada e doida um exemplo de liberdade e realização pessoal. Tudo a ver.