Um vinho “que não morde”

Por Reinaldo Paes Barreto*

Que pena, logo neste ano de 2021, em que faz 70 anos que o Beaujolais Nouveau foi lançado em uma terceira quinta-feira de novembro nos bistrôs de Lyon e, no ano seguinte, em Paris – e, já nos anos subsequentes no resto da França, e no mundo – o Beaujolais Nouveau não “ arrivou” nesta quinta-feira, 18/11/2021, nem no Rio, nem no Brasil, por conta do rastro da pandemia. Não sei em outros países. Sei que é uma fratura nessa tradição e, sobretudo, na estratégia de um dos mais espetaculares “cases” de marketing da história moderna do vinho.

Em 1951, o negociante de vinhos Georges Duboeuf, percebendo o potencial do Beaujolais Nouveau (até pela aceitação testada em Lyon), teve a ideia de oferecer ao mercado, antes do Natal, um vinho “ diferente”, colhido e produzido no mesmo ano. E discretamente fez chegar a notícia aos jornalistas especializados. E a data entrou para o “calendário imexível” dos apreciadores e da mídia. Com distribuição planetária. Cerca de 70 milhões de garrafas.

No mesmo dia, pelo menos na França, os bares e restaurantes ficam (ficavam?) agitados e as pessoas se aglomeram/aglomeravam desde antes da meia-noite da véspera para provar a nova safra. No Brasil, a pioneira-responsável tem sido a Mistral, que importa do produtor Joseph Drouhin e sempre escolheu lugares emblemáticos para a degustação. Já foi no consulado francês no Rio e São Paulo. Já foi no antigo Garcia & Rodrigues. Já foi na Churrascaria Palace. E em outros pontos de gastronomia.

E é (era?) uma cláusula pétrea: nunca antes, nunca depois desta quinta-feira. Corre, inclusive, uma curiosa história-lenda a respeito, segundo a qual o Mitterrand recebeu no Palácio do “l’ Élysée” o então primeiro-ministro alemão, Helmut Kohl, numa terça-feira anterior à terceira quinta-feira de novembro do lançamento e resolveu surpreendê-lo, avisando que ia oferecer uma prova antecipada do Beaujolais Nouveau. Não conseguiu, (quebrou a cara), mesmo sendo presidente da França!

Tecnicidades: o vinho Beaujolais é produzido com 100% da uva Gamay, ao contrário dos grandes vinhos da Borgogna, que são elaborados com a Pinot Noir, e não observa o ciclo milenar da absoluta maioria dos vinhos — colheita, prensagem, vinificação, armazenamento (mais de um ano), engarrafamento e distribuição no ano seguinte.

E ele é um vinho jovem que “não morde”, como disse um crítico bem francês. Tem uma cor violeta e gosto de frutas do campo, com predomínio de amoras, framboesas, cassis e morango. Alguém também já identificou uma “explosão de frutas vermelhas”. Em alguns anos sente-se “lá longe”, no final da boca, um retrogosto de banana, por conta da terebentina. É um vinho para ser apreciado quase frio (10 a 12 graus), sem compromisso com horário: pode ser tomado antes do almoço, ao ar livre ou na beira da piscina, ou num piquenique chique. E harmoniza com qualquer comida leve, não muito condimentada.

Mas esqueçam “o discurso”, “frustrem o enochato”: o Beaujolais é um vinho vivo, alegre, sem memória nem responsabilidade com o passado. Ele é simplesmente Beaujolais.

*Colunista de gastronomia e vinhos, um dos fundadores da confraria Os Companheiros da Boa Mesa, em funcionamento desde 1982, e um dos embaixadores do Turismo do Rio.