Espirituoso é engraçado?

Reinaldo Paes Barreto

Não, é digestivo. Aliás, a origem da expressão “espirituoso” para designar licores é curiosa. Mas, antes, um gole de história. Não é provável que os egípcios, persas, gregos e romanos da Antiguidade conhecessem o processo de destilação de plantas e frutas. Eles conheciam apenas o processo de fermentação e por isso produziam vinho e a cerveja. A destilação começou a ser praticada no começo da Idade Média, no Extremo-Oriente. Tanto assim que a palavra álcool e alambique provêm de “khöl”, que em árabe designa uma solução preparada a partir de um misterioso pó preto. Eles o misturavam a um líquido, depois ferviam e quando chegavam ao ponto de ebulição desejada, deixavam o vapor condensar-se para, em seguida, solidificar-se. Obtinham assim “el” khöl, com o qual as mulheres dos haréns faziam sombra para os olhos. Detalhe: até hoje a Lancôme vende um lápis delineador chamado Crayon Khöl.

Bom, mas voltando à expressão espirituoso. Nesse período (século V da nossa era, e subsequentes), as três classes sociais dominantes no mundo eram o Clero, a Nobreza e o Povo.

Conforme o hemisfério e a época, variava apenas esta hierarquia. E o clero atuou em todos os campos da atividade política, social e pessoal dos seus contemporâneos. Inclusive na produção de vinhos, cervejas, “eau-de-vies” e licores. Eram incansáveis. No silêncio dos monastérios, sobretudo os monges, com a participação de alquimistas, e químicos empíricos, procuraram obstinadamente soluções medicinais que prolongassem a vida. E para isso, passavam noites em claro, ou andavam quilômetros no calor ou na neve, em cima de cavalos ou jegues, para trocar bulas com outros cléricos – e até bruxos. Mas o propósito não era, só, prolongar mecanicamente a vida. Eles tinham a ambição de colocar “espírito” nas bebidas alcoólicas, para que elas transmitissem inteligência, alegria e energia vital. Donde os antigos, como o meu pai, chamarem licores de espirituosos.

Mas foi só quatro séculos depois, com a chegada à Europa do açúcar de cana, vindo das Antilhas, é que os futuros produtores de licor definiram a fórmula, no mais das vezes secreta, com a qual produziam (e produzem até hoje), os emblemáticos digestivos que são apreciados mundo afora. E utilizam basicamente dois processos para a fabricação de licores de qualidade: a maceração de ervas, frutas secas, raízes e folhas (hortelã, laranja, tomilho, etc) que são mergulhadas em álcool frio dentro de um recipiente hermeticamente fechado, até que os componentes e os aromas “contaminem” esse líquido alcoólico. E a destilação, que é o método mais utilizado na produção em escala industrial. Ou seja, esses mesmos ingredientes são colocados em um alambique e cobertas com álcool até que, pelo efeito do calor as várias substâncias físicas dessa mistura são separadas pela evaporação e se condensam. Finalmente, o líquido resultante é filtrado, para eliminar os resíduos e cada fabricante finaliza com mais ou menos açúcar, corantes, etc.

Por isso, licores são doces e de alto teor alcoólico, que varia de 20% a 58% por litro. Devem ser consumidos como digestivos, após refeições mais copiosas e ainda hoje são apreciados no Ocidente e Oriente, nas versões tradicionais, ou caseiras. Bebe-se licor em pequenos cálices, em temperatura ambiente ou, hoje, até como drinque: em copos longos, com gelo. Epílogo: os licores são muito saborosos, têm o seu lugar no radar dos gourmês mas, atenção: são traiçoeiros. Parodiando o comercial do primeiro soutien, porre de licor a gente nunca esquece!