Opinião | Se essa rua, essa rua fosse minha: direito à rua e à cidade

Por: Arícia Fernandes* e Allan Borges**

O nome de uma rua, avenida, viela, passarela ou beco diz muito da história de uma cidade. Reflete sua memória coletiva, mas, também, suas diferenças e preferências, suas (supostas) vitórias e muitas vezes suas discriminações de gênero, raça e classe.

Neste caso, têm-se as chamadas interseccionalidades sociais: as interseções dos preconceitos dos mais diversos matizes que atingem as minorias e que, muitas vezes, se unem numa encruzilhada, como se as placas de sinalização se embaralhassem ao sopro de um vendaval. Não estão nos nomes que se revelam, mas tantas vezes naqueles sobre os quais o Estado propositalmente se omite.

Na Pequena África, por exemplo, localizada no coração do Centro da Cidade do Rio de Janeiro, mais logradouros devem legar o nome de colonizadores para a posteridade do que de escravos. Só em novembro de 2021, Tia Ciata, a matriarca do samba, e Milton Santos, o geógrafo de fama internacional, para citar só duas das personagens negras icônicas da história carioca, ganharam ruas para chamar de suas. 

Morar numa rua que não tem nome - só o número do Lote, da Quadra e da Casa - também é uma forma de discriminar o sujeito pela ausência de endereço e de CEP; aquele indivíduo cujo passaporte para a cidade e, assim, para a cidadania, ainda não chegou . Quem dirá o Sedex!

Se essa rua, se essa rua fosse minha…

O Supremo Tribunal Federal fixou a Tese 1070, derivada de julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral admitida, definindo que “é comum aos poderes Executivo (decreto) e Legislativo (lei formal) a competência destinada à denominação dos próprios, vias e logradouros públicos e suas alterações, cada qual no âmbito de suas atribuições.”

O debate democrático permite que os nomes sejam escolhidos não pela vontade caprichosa de um, mas pelos valores compartilhados de muitos. A nomeação dos logradouros é uma das facetas da assim denominada regularização urbanística da cidade: antes mesmo do título da casa, própria a uma regularização estritamente fundiária e cartorial, chega a abertura das vias e seus batismos coletivos.

É pela “apropriação” da rua que o indivíduo principia o direito de acesso à cidade.

Nas comunidades cariocas, a escolha do nome das ruas, becos e vielas ou deriva de um fato já consumado – e assim reconhecido pela legislação local – ou se dá em reuniões dos moradores, para homenagear os que fazem parte de sua história. É o caso da Maré, cujas ruas, inclusive, foram pavimentadas pelos moradores com o asfalto remanescente das obras de abertura da Avenida Brasil, de modo a impedir que seus filhos se fossem pelos desvãos das palafitas em dias chuvosos, como conta Ricardo Lira, o grande jurista da regularização fundiária plena, em um de seus livros.

Não se pode nomear logradouros públicos com nomes de pessoas vivas, mas é pelos mortos homenageados que se revela a memória de uma cidade - ou o que se quer apagar... 

Muitas vezes o batismo das ruas é como a preservação intacta de uma dor histórica - ou de um personagem odioso seu - para que ela jamais seja esquecida, tampouco revivida… Em outros municípios, como São Paulo, prefere-se rebatizá-las, como forma de revanche do lugar contra o tempo. Memória ou superação? A quem cabe decidir?

No Rio de Janeiro, Capital do Império, da República, Município Neutro, Distrito Federal, Estado da Guanabara e Cidade Maravilhosa, tem para todos: um ditador, como a Rua Getúlio - para que não haja outras ditaduras; uma heroína, como Anita Garibaldi, para que se vença o preconceito de gênero; as flores de um conjunto habitacional, localizado na Zona Oeste da Cidade do Rio de Janeiro, para que perfumem suas ruas; a Rua Simone de Bouvoir, denominação apropriada por uma comunidade carioca - e não pelo “asfalto” - para desconstruir o estigma de que em favelas não entra filosofia.

Se essa rua, se essa rua fosse deles também...

Todos têm direito a um endereço, mesmo em tempos de correios eletrônicos interplanetários e redes sociais ubíquas. Ninguém mora nas nuvens… mas numa rua! Por vezes também ela - a rua - serve de morada. 

Na comemoração dos 20 anos do Programa Favela-Bairro, num seminário realizado na sede da OAB/RJ, Carlos Vainer comentou que, em todas as línguas que conhecera, o vocábulo “rua” significava uma via onde se podia transitar de um lugar para o outro; no Brasil, porém, ela muitas vezes servia para o sujeito ficar...

Rua do Catador de Papelão; Rua da Tiazinha; essas ruas muitas vezes pertencem mais aos anônimos que a frequentam diária e invisivelmente do que àquelas cujas placas “nomeadas” adornam o mobiliário urbano.

Até o não-endereço e o não-habitar uma casa mostram o quanto algo aparentemente tão prosaico para alguns pode significar, para outros, mais do que um lugar, um momento especial: o de escrever com orgulho seu endereço num formulário de emprego.

Se essa rua, se essa rua fosse nossa /A gente mandava, mandava ladrilhar.

 

*Arícia Fernandes Correia - Procuradora da Cidade do Rio de Janeiro e Professora da UERJ

**Allan Borges - Subsecretário de Habitação da SEINFRA-RJ e Mestre pela FGV